O HOTEL
 
 
     Desci a escadaria do prédio carregando uma pequena mala e meu material de trabalho. A viagem não seria muito longa, mesmo assim hesitei um pouco quanto a aceitar aquele serviço. Meu auxiliar avisou de última hora sobre uma gripe que o impediria de acompanhar-me. Tudo bem, imprevistos acontecem. A ideia era chegar até uma pequena cidade, a fim de registrar um casamento, para o qual havia sido contratada. Tudo correndo bem, em dois dias estaria de volta. Liguei o carro e peguei a estrada rumo ao Sul de Minas,
     
     Estranhamente, não queria ir. Meu desejo era ficar em casa com meus livros, filmes, o velho pijama de flanela, as frustrações e sombras causadas pelo fim do relacionamento de dez anos. Porém, lembrei de minha conta bancária. Ela não estava propícia a recusar a quantia que me foi oferecida. As famílias dos noivos fizeram questão, queriam a melhor fotógrafa de eventos, modéstia à parte, claro! Nem reclamaram quando dobrei o preço, alegando a distância e as estradas mal conservadas. O jeito foi encher-me de coragem e seguir rumo ao desconhecido... Nos meus planos, não gastaria mais que cinco horas de viagem, mas a certa altura, o GPS me fez enveredar por rumos diferentes do previsto anteriormente. Irritada, praguejei em voz alta:

     
     — Grande coisa essa tecnologia, talvez uma bússola tivesse me ajudado mais!

     
     Escureceu antes do esperado e, sinceramente, nunca gostei de dirigir à noite. A estrada de terra me causava medo, pois era ladeada por matas fechadas. Para piorar, a lua cheia que iluminaria a noite daquela sexta-feira, estava envolta por nuvens pesadas. O único clarão era dos relâmpagos que cortavam o céu, seguidos por trovões assustadores. Logo, a chuva caiu pesada sobre o para-brisa. 

     
     Senti-me sufocada ao fechar totalmente a janela do carro, mas o vento frio parecia assobiar no meu ouvido, me causando arrepios. À minha frente, apenas o solitário caminho sem asfalto. Me desesperar nessa hora não adiantaria em nada, mas confesso que meus nervos estavam em frangalhos. À medida que eu avançava, a cerração envolvia o automóvel, tirando totalmente a visibilidade. Olhei os ponteiros do tanque de combustível — graças a Deus havia me lembrado de abastecer na última cidade. Eu nunca havia me sentindo tão sem rumo. Me vi perdida no meio da noite, dirigindo numa estrada coberta pela lama, debaixo de uma tempestade. Para piorar, o maldito celular continuava totalmente sem sinal. Mesmo impedida pela neblina, eu adivinhava as ribanceiras, pois via árvores e morros na claridade dos raios.

        
     Há tempos não rezava, mas a angústia causada pelos trovões, automaticamente, me fez recitar antigos cânticos e orações aprendidos com as avós — segundo elas, era o único recurso para abrandar tempestades e ventos. Em dado momento, pensei que minhas vistas me pregavam uma peça. Vi uma placa apontando para um desvio, na qual estava escrito:
“HOTEL PENA BRANCA: 1 KM. Senti que minhas preces poderiam ter sido atendidas. Eu não tinha outra opção, mesmo que quisesse. Precisava de um abrigo para passar a noite e me livrar da escuridão e da chuva. Manobrei o carro na direção indicada. O temporal cessou, o mato sombrio, o vento sibilante e o canto das aves de mau agouro desapareceram como que por encanto.       
     
     Notei que a estrada era margeada por belas palmeiras de um lado e ipês de outro. Avistei no alto da colina uma grande construção toda iluminada. Tudo se tornava mais claro, havia luzes por todo percurso. A neblina densa e o vento forte deram lugar a uma brisa fria, porém branda.

     
     No final da alameda, avistei o hotel. Mesmo sob efeito dos sustos recentes, ainda me questionei interiormente: como um lugar inóspito feito aquele, comportava tamanho empreendimento? Mas naquela hora, isso não vinha ao caso! Eu precisava respirar, beber algo, me acalmar! Estacionei no lugar indicado através de aceno, por um jovem uniformizado que se retirou em seguida.  Desci do carro ainda sentindo as pernas bambas e as mãos trêmulas. O sereno caía sobre as roseiras de um canteiro deixando as flores salpicadas de gotas douradas sob a luz. O ruído de uma fonte luminosa, o aroma agradável de jasmins e alfazemas me acalmavam lentamente...


     Era mês de agosto e a noite estava fria. Peguei minha bagagem — apenas uma maleta com algumas roupas e a bolsa.  Olhei para os lados, procurando alguém que pudesse me dar informações. Comecei a caminhar em direção à entrada principal. Ouvi o som de passos e parei, mas o coração se acelerou. Percebi uma presença, mas não consegui ver nada. Uma mão quente pousou sobre meu ombro descoberto. Um arrepio percorreu todo o meu corpo. Aquele toque em minha pele foi tão intenso, como se vestígios de um passado desconhecido se desvendassem através dos tempos e se acomodassem no interior da minha alma. Em seguida, algo extremamente macio e aconchegante deslizou sobre minhas costas, era um xale de seda. Nesse instante, ouvi uma voz masculina.

      "Bonsoir, mademoiselle, bienvenue!”. Je m'appelle Antoine de Saint-Hilaire
. S'il te plaît, viens avec moi!


     Era um homem alto, de meia-idade. Tinha cabelos escuros, ligeiramente grisalhos e usava um elegante terno preto. Tinha um olhar intenso e profundo, de esfinge encantadora, capaz de intimidar, mas, ao mesmo tempo, derramar uma sensação de paz e segurança. Ele pegou a mala com uma mão e com a outra segurou meu braço. Sem mais, pegou a mala com uma mão e com a outra segurou meu braço. Pensei dizer que conseguia caminhar sozinha, mas a sensação de calor emanada de sua mão, era tão reconfortante que me fez calar e apenas sentir.

     Em silêncio, subimos as escadas e nos aproximamos da porta de madeira que se abriu lentamente. Ouvi o som de lenha se queimando na lareira localizada em um canto da sala bem decorada e espaçosa. Aquele cavalheiro parecia ter saído dos meus livros antigos. Me fez uma reverência, deu ordens ao rapaz de uniforme para levar a bagagem e uma moça magra e de olhos arregalados se encarregou de levar-me aos meus aposentos. A decoração era luxuosa e ali reinava uma atmosfera quase irreal, tanto nas cores dos lençóis, no bordado das toalhas, nas rosas que decoravam a mesa. Tudo parecia de um outro tempo e lugar. Mentalmente saudei o bom gosto do decorador.  

     A camareira não disse palavra, dirigiu-me apenas um ligeiro sorriso de cumprimento ao sair do quarto. Averiguei o local e logo percebi que uma das portas levava a um ambiente onde havia armários decorados com vitrais floridos, velas perfumadas, essências diversas e um roupão branco bordado no mesmo padrão das toalhas. A grande banheira com diversas torneiras douradas, era tudo que eu precisava, após aquele susto na estrada! Derramei alguns sais perfumados na água quente... Me despi não apenas das roupas, mas de todos os sustos daquele dia, mergulhando num mar de paz por um tempo infinito, enquanto lá fora a chuva e o vento retornaram insistentes.

     Eu secava os cabelos quando ouvi do outro lado da porta, uma voz suave avisando que o jantar estava servido. Usando meu vestido vermelho de festa, desci os degraus e fui saudada pelo mesmo homem de terno preto que havia me recepcionado quando cheguei. Me olhou minuciosamente e percebi naqueles olhos algo mais que a simples delicadeza de anfitrião. Conduziu-me até a mesa no centro da sala. Afastou a cadeira e depois sentou-se também. Estranhei a falta de outros hóspedes para o jantar, mas não me preocupei muito, talvez fosse baixa temporada. O ambiente era atípico, mas maravilhosamente aconchegante!  Com muita fome experimentei cada um dos pratos servidos.  

     Guardo na memória o sabor de cada iguaria saboreada naquela noite. Terminada a refeição, o cavalheiro convidou-me para a outra sala. Segurou minha mão e senti uma agradável e demorada pressão. Ofereceu-me uma poltrona defronte à lareira acesa. Ele demorava o olhar nas chamas, fiz o mesmo, e assim permanecemos por algum tempo olhando o crepitar das brasas. Após alguns minutos, a conversa fluiu como se fôssemos antigos conhecidos com muitos gostos em comum. Soube que viera da França há alguns anos e se encontrou naquele lugar, mas segredou-me com bom humor ainda faltar algo para que fosse realmente feliz...

     Pela manhã, despertei ao som dos pássaros. Abri a janela me deparando com uma visão incrível. A chuva dera lugar ao sol que dourava todo o lago de Furnas. Na noite anterior não havia reparado a beleza daquele lugar cercado de pura natureza. Com calma, pude apreciar cada detalhe e me encantar com tudo ali.   Me arrumei e desci para o café, me esforçando para não me esquecer que ainda tinha muito trabalho pela frente e não poderia me atrasar.  Com certeza, o dono do hotel me daria as informações necessárias para que pudesse seguir viagem. Após o desjejum, o homem de terno preto, me levou até o carro. Entre risos, devido ao assunto que nunca acabava, combinamos continuar a conversa quando eu retornasse.  No banco, encontrei meu celular, agora com sinal. Verifiquei que o GPS estava funcionando e me apontava o destino.

     Na despedida, senti sua mão no meu rosto e o seu olhar fixo nos meus olhos. Não consegui me desviar, enquanto ele analisava minha expressão de espanto. Se aproximou lentamente e roçou os lábios nos meus, dizendo em forma de sussurro:


     "Mon cher, j'ai attendu si longtemps pour toi!" Je suis content que tu sois venu!
Je voudrais pouvoir rester plus longtemps.2


     Ele me olhava suavemente, investigando meu semblante até que fechei os olhos para melhor sentir sua respiração quente sobre meu rosto. Foi um beijo tão intenso que o mundo ao redor pareceu se dissipar... Eu queria ficar presa para sempre naqueles braços que me enlaçavam. Correspondi ao beijo e a única coisa que importava no mundo era a sensação de bem-estar que ele me causava. Como eu gostaria de atender ao seu pedido e ficar mais, muito mais! Aos poucos me afastei, mas minhas mãos custaram a se desvencilhar das dele. Tudo que havia acontecido nas últimas doze horas parecia incrível e quem sabe, inesquecível. Tudo reportava a algo surreal, onírico e indescritivelmente mágico.

     A viagem dali por diante, foi tranquila e o trabalho muito satisfatório. Eu estava ansiosa  e na volta dispensei o caminho mais curto, pois minha intenção era retornar pela mesma estrada. Havia em mim uma curiosidade e um desejo enorme... Precisava saber cada detalhe da vida daquele homem... Por que era tão solitário? Precisava saber daquele olhar que parecia conhecer minha alma. Queria entender o motivo de eu não desejar mais sair do seu lado. Precisava saber o que estava acontecendo comigo.
     
     Pouco antes da ponte, abri a janela procurando pela placa indicando a entrada do hotel. Mesmo com toda a claridade, não a encontrei. Havia apenas mato e o silêncio tomando conta do lugar. Cheguei à conclusão de que havia me confundido e resolvi buscar informações com alguns pescadores distraídos à margem da represa. Indaguei sobre a entrada para o Hotel Pena Branca. Os três homens me olharam espantados, quando falei que era hóspede daquele hotel. Com um riso meio irônico, um deles me disse para atravessar a ponte que o avistaria no alto da colina.


     Segui adiante, e ao olhar para trás avistei apenas as ruínas da construção de um hotel. Os moradores do distrito de Santo Hilário me informaram que havia sido abandonado há mais de 40 anos, nos meados da década de 70, ainda em fase construção. Segundo eles, o Pena Branca teria dezenas de suítes, além de piscinas, restaurante, e até um heliporto.  Um teleférico levaria os hóspedes da montanha até o hotel e outro do hotel até as margens do lago de Furnas. Uma construção sem igual naquele lugar. Mas eu não conseguia acreditar que tudo tivesse sido apenas ilusão. As informações dos pescadores, decidi, não me convenceriam, precisava ver de perto.  

     Tentei ser racional e crer que naquela noite chuvosa eu era uma mulher sozinha e amedrontada, mas não queria acreditar ter sido apenas imaginação. Tudo fora tão real... Ao caminhar até o local, percebi o cenário de abandono. Havia buracos no chão, antes coberto por flores. As paredes pintadas de branco estavam agora depredadas. Parecia que tudo aquilo desabaria a qualquer momento. Atordoada, não consegui raciocinar. Senti um profundo vazio na alma, apesar de misteriosamente ainda reconhecer aquele perfume no ar. O toque do vento na pele trazia a estranha sensação, parecendo afirmar que tudo fora verdade.

     Respirei fundo tentando caminhar de volta até o carro. Peguei a estrada de volta para a Capital, com imenso pesar e o coração partido. Em casa, joguei a bagagem a um canto e caí na cama, imaginando que um sono profundo me libertaria de todo aquele mal-estar. Os dias se arrastavam, e eu ainda sem ânimo para voltar à vida normal. Lembrei-me de desfazer a mala da viagem ainda abandonada no mesmo lugar.

     Entre as roupas, envolto em um xale de seda — o mesmo que me aqueceu na noite chuvosa, encontrei um envelope com os dizeres:
UN PEU DE MÉMOIRE. No retrato amarelado pelo tempo, havia um homem e uma mulher. As feições dela eram as minhas. A diferença estava no corte dos cabelos e roupas do século passado que usava.  Quanto ao homem, era o cavalheiro do hotel, sorria com olhar carinhoso... No verso, as palavras que me acompanharão pela vida afora:
                             Mon cher
Les plus belles choses de la vie ne peuvent être ni vues ni touchées, mais elles ne sont ressenties que par le cœur. L'essentiel est invisible pour les yeux.
Je t'aime
 Pour toujours. 3

                                                                       Antoine

Tradução: 
1-Boa noite, mademoiselle, seja bem vinda!". Meu nome é Antoine de Saint Hilaire. Por favor, venha comigo.

2-
Minha querida, esperei tanto por você! Que bom que veio! Gostaria tanto que ficasse mais!.  

3
 Minha querida, 
As coisas mais bonitas da vida não podem ser vistas ou tocadas, mas são sentidas apenas de coração. O essencial é invisível aos olhos.     Eu te amo!                     
Eternamente seu,

 

                                                                  Antoine




A primeira foto do local é minha autoria, a segunda eu encontrei no site abaixo:

https://www.imgrumweb.com/post/BsLcDoRhJKD

 

       
Maria Mineira
Enviado por Maria Mineira em 06/01/2019
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