Lembranças espectrais( Conto 3)

Um álbum de cor amarronzada estava aberto sobre a escrivaninha. As fotos eram de quase cinquenta anos, e corria o fatídico ano de 1914. Uma fria e cinzenta neblina podia ser vista da janela. As fotos mostravam dois homens, um deles de bigode bem desenhado, chapéu preto discreto e roupa habitual, o outro era mais velho, tinha olhos claros, mesmo que a fotografia fosse a preto e branco, careca e com rugas de expressão. Uma mulher estava sentada ao meio, enquanto os dois homens estavam em pé. A fotografia estava assinada com um nome ilegível, a data era 14 de setembro de 1872.

Corriam os olhos de Adriano pela fotografia. Aqueles retratados na fotografia tinham sido seus avós e tio, agora ele vivia sozinho numa rua qualquer. Ele sentia um grande pesar pela solidão, mas se acostumara, e raramente acorria para a casa de um conhecido, amigo ou colega. Raramente namorava e tinha essa vida como uma pele fixa e forte.

As lembranças evocavam em Adriano emoções que iam do tédio( lembrava de quando era obrigado a ir visitar os avós), ao entusiasmo de belos dias de primavera passados no campo ordenhando as vacas, cavalgando ou conversando próximo às árvores. Certa vez contara a um conhecido sobre as intensas, e também estáticas emoções que sentia sempre que olhava as fotografias, o sujeito lhe disse:

- Essas suas fotos ainda vão ganhar vida- E ria largamente.

Adriano não se considerava piegas, é que o álbum jamais saíra da segunda gaveta para ir a outro cômodo da residência. Enquanto as outras pessoas guardavam os álbuns e tudo que tivesse uma imagem de seus parentes vivos ou já falecidos, Adriano preferia ou inconscientemente deixava o álbum na segunda gaveta, sempre trancado e a chave na primeira gaveta.

Podia-se dizer que Adriano era um fotomaníaco, ele tinha muitos livros contendo fotografias; alguns quadros contendo mais fotografias de parentes e sempre tinha na cabeceira da cama, algumas fotografias Polaroid e negativos já velhos...

As fotografias que mais apreciava eram de antigos casarões, eventos em família dos anos de 1890 como casamentos, batizados, mobiliário, enterros... Havia uma fotografia em tamanho médio de Debussy na casa de um amigo tocando piano, e algumas senhoras ouvindo. Sentia saudades de um tempo como aquele que a fotografia mostrava, mas logo afastava essa ideia, considerava-a estranha e sabia que não tinha vivido aquele momento, nascera em 1892 e era italiano, a fotografia retratava uma soirée na França e uns cinco ou seis anos antes.

Não queria se deixar tomar por reminiscências que não fossem de sua vida particular, quando tinha um sentimento ao ver a fotografia de Debussy, dizia para si mesmo: "Ora, gosto tanto da música dele, que gostaria de estar ao lado dele ouvindo algum noturno, mesmo porque Debussy é o único que toca com a alma". Assim pensava e logo colocava a fotografia de lado.

Enquanto o tempo passava, as fotografias foram sendo deixadas de lado. Raramente o álbum saía da gaveta. Outras atividades tomaram conta da vida de Adriano. No entanto, desde que não via mais nenhuma fotografia, tinha sonhos onde pessoas pintadas de cor cinza chamavam-no em molduras, quando estava acordado, e andava pela casa, súbitos espectros claros passavam voando, eram formas incorpóreas, como incenso ou neblina de uma manhã de inverno, apenas se podia dizer que eram humanos por uma aparência de longo cabelo, olhos, mas eram espectros luminosos e velozes.

Adriano ficava assustado, mas não acreditava que fossem mais que imagens distorcidas de seus olhos, estaria precisando usar óculos, pensava.

Nada era falado, os espectros moviam-se por toda a casa. Como luzes artificiais que ganham vida e aproveitam, não havia um só dia que Adriano não as visse. No começo das aparições, ele saía de casa e retornava altas horas, mas depois decidiu interrogá-los e sempre exclamava:

- Essa casa virou um cemitério! Ou pior, um limbo de espectros luminosos!

Decidira retirar as fotografias e os quadros, entretanto, ainda sentia afeição e uma forte identificação com as fotografias, a que retratava o Debussy estava trancada ao lado do álbum de família.

Ia se mudar e começou a arrumar suas coisas e sentiu sono. Continuaria por todo o final de semana e já tinha um local definido onde seria sua nova residência. Dormiu lentamente, mas uma sensação de leveza ímpar passou por todo o seu corpo, os olhos ficaram como duas opalas fixas a terra.

Acordou e viu que estava em um amplo local, mas uma média moldura de cor escura estava ao seu lado, levantou-se e olhou para o vidro da moldura, viu sua sala como havia deixado. As lembranças espectrais tomavam formas definidas e o chamaram. Ele as acompanhou e a moldura foi sumindo.

Martinschongauer
Enviado por Martinschongauer em 15/01/2019
Reeditado em 19/04/2023
Código do texto: T6551328
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