O FIM DO MUNDO

Acordei sobressaltado. Foi aquele barulho tão incisivo, parecia uma broca de dentista, mas muito mais aguda, intensa, enlouquecedora. Tamanha intensidade fez de alguma forma minhas narinas sangrarem e comecei a ter convulsões, mas as convulsões foram o ápice da tormenta, antes disso eu batia com a cabeça na parede em que a cabeceira da cama recostava.

Aí começaram as convulsões. Meu corpo contorcia-se involuntariamente, o que me lançou longe da cama, ao chão, e de onde passei a pular, como se ondas elétricas me induzissem movimentos ondulatórios e epiléticos. Não me lembro de nada depois disso, nem quanto tempo estive à mercê dos descontroles funcionais do meu cérebro, que sofrera aquela descarga intensa de ondas sonoras absurdamente altas, nem muito menos que lugar era aquele em que me encontrava depois que acordei, ainda sentindo fortes dores de cabeça e um zumbido nos ouvidos.

Depois de me ambientar melhor e me situar na presente situação, pude constatar que estava em um porto de cargas contêineres e que aquela manhã turbulenta tinha se tornado noite, pelo menos aos meus olhos, pois não me lembrava quanto tempo tinha apagado, mas foi o choque inicial que se abateu sobre mim. E ainda mais perplexo, percebi os guindastes manobrando contêineres sem ninguém nas cabines para os conduzir. Tudo no porto operava sozinho, como se fosse automatizado, o que de toda feita não era improvável, mas estranho.

Comecei a correr e me esconder de qualquer coisa que achasse suspeita. Mas o medo pareceu incutir pesadas garras sobre mim e me sobressaltava a cada sombra, cada barulho, mesmo um inseto me assustava àquela altura. Procurava por alguém que pudesse me ajudar, mas percorrendo ruas, becos e os mais recônditos cantos, nada encontrei, o que me aproximou ainda mais da loucura inevitável que me sondava.

Lugares que eu passava todas as noites, bares, alguns mercados que funcionavam até tarde e que eu sabia estariam funcionando, estavam fechados e o silêncio das paredes daquelas construções, o baque seco das solas dos meus sapatos contra as gastas pedras de paralelepípedos me assolavam de forma exagerada, refletindo as estranhas sensações daquela noite singular.

Depois de algum tempo me cansei e sentei num banco próximo à praia. Olhava o mar e a amplitude celeste estrelada aumentada pelo profundo rumor vindo do mar agitado. As vagas recuavam avolumando-se ferozmente até romperem-se frente à própria imensidão bravia. Estouravam ondas indômitas de uns seis metros, pelo que pude calcular. Aquele cenário era mesmo aterrador e os meus nervos pareciam frágeis como palha no vento, não conseguiria aguentar muito mais, pensei. E quando dizem que nada está tão ruim que não possa piorar, é bom escutar, porque é verdade, e foi como aconteceu.

Perseguindo uma sombra esguia que se projetava naquelas muralhas antigas do século XVI, fui levado até o grande farol desativado, que por alguma sorte desconhecida estava funcionando então. O longo alcance do farol me fez olhar assombrado para o mar e ver pelo menos três baleias agonizando, com suas nadadeiras para fora e seus gritos ou gemidos, que causavam uma dor no coração e nos ouvidos. Eram gritos de ajuda, estavam morrendo. Tão longe de casa em pleno inverno no hemisfério sul, sem lógica para a migração que fizeram, sucumbiam afetadas pelas adversidades que se apresentavam.

Quanto à sombra eu a perdi, tão abalado que fiquei com o sofrimento daquelas baleias, vítimas de algum equivocado fenômeno natural. Algo estava muito errado e agora passei a me preocupar de verdade. Deixei rapidamente o local, pois não aguentava mais ouvir aqueles gritos tão parecidos com os dos filhotes do homo sapiens. Comecei a me enfiar em outros caminhos, os quais não estivera antes. O cansaço e o pânico estavam me devorando mais rápido do que eu tinha forças para suportar, resolvi parar. Vi um hotel e entrei, a porta estava aberta, sem recepcionista, sem ninguém. Escolhi um quarto e estirei meu corpo sobre uma cama. Deitei e apaguei.

Quando acordei e olhei no relógio eram 08h40 da manhã. A escuridão do quarto não me fez perceber que já era de manhã, então fui até a janela e abri a cortina, quando olhei para o céu vi que não havia sol, ainda era noite. Presumi que o relógio estava errado. Embora parecesse ter dormido uma eternidade fiquei confuso e procurei qualquer outro relógio pelo hotel. No quarto onde eu estava, um rádio relógio piscava a hora no visor intermitentemente, acusando uma queda de energia durante a noite. Na recepção do hotel eu me lembrava que tinha um relógio à pilha na parede, corri para lá e comparei com meu relógio de pulso: 08h43, sim, para meu espanto o período da manhã apresentava-se sem a presença do sol, como se eu estivesse no polo norte e fosse inverno. Liguei a televisão na recepção para me informar do que estava acontecendo e assim me situar sobre a real situação das coisas. Comutava entre os canais programados e nenhum funcionava. Sintonizei os canais manualmente e mesmo assim não consegui sinal algum. Liguei o computador, tentei conectar à internet, mas também sem sucesso, assim como o telefone. Dominado pelo desespero fui quebrando tudo, jogando coisas no chão, chutando, pisando; explodi feito um maluco.

Voltei pro quarto e dormi mais um pouco, não tinha nada que eu pudesse fazer pra escapar daquele inferno. Era como se acordasse numa realidade completamente diferente sem aviso, onde tudo é absurdo.

Creio que dessa vez fui despertado pela fome, sai pra procurar o que comer. Rodei por bares, padarias, mercados. Tudo disponível; fui pegando coisas não perecíveis, pois naquele ponto da cidade, onde agora me encontrava, parecia não haver energia elétrica, um cheiro forte de coisa estragada começava a incomodar. Enquanto comia, devorando um pacote de batatas chips, sem modos e esfomeado, ouvi um barulho de coisa caindo, algo metálico. Quando olhei vi uma pessoa, um homem que saqueava um mercado logo em frente. O barulho foi uma lata de feijão que se espatifou no chão quando o saco de papel onde carregava comida se rompeu. O homem ficou paralisado me encarando e eu encarando de volta. Ambos esperando um a reação do outro e nessa crescente tensão meu coração batia acelerado, precipitado como eu, sem saber que atitude tomar. Mas aí o homem largou as compras ali mesmo e saiu correndo pro carro, estava a poucos metros do veículo e só pude tentar correr também, o mais rápido que consegui. Alcancei ele enquanto tentava ligar o carro, que falhara na primeira tentativa, o que me deu mais tempo. O homem passou a gritar descontrolado, me batia agitando as mãos, me atingindo da forma que seus movimentos descontrolados vinham, socos, tapas, arranhões. Só me protegia, queria respostas, não socar alguém. Mas ele me atacava física e verbalmente. Dizia coisas como: “Sua aberração, sai daqui! Vocês não vão me pegar, eu não serei apanhado”.

Eu não conseguia fazê-lo parar, então me desvencilhei dele, recuei e olhei pro chão procurando qualquer coisa que pudesse usar. Uma lata de salsicha, usei para bater no homem com força, na cabeça, ele vinha contra mim já, quase me alcançando, quando mais como um instinto de defesa do que um ataque proposital, consegui acertá-lo. Ele caiu de lado, deslizando seu corpo sem grande impacto. Mesmo sendo noite o céu estava claro, sem nuvens e a lua cheia banhava a atmosfera noturna e misteriosa. Fiquei sentado num banco ao lado do corpo do homem, esperando ele acordar e fumando um cigarro. Prazeroso fumar um cigarro agora, até tinha me esquecido dele. Um único cigarro enfiado por dentro do forro do bolso da jaqueta, indo parar lá através de um furo sem vergonha. De todas as maneiras que eu havia tentado, o cigarro foi a única coisa que me fez perceber novamente o velho jeito humano de ser, as trivialidades da vida como tomar um café, assistir à tevê, tudo, exceto aquele cigarro, foi extinguido.

O homem acordou subitamente, sentando-se como um boneco de pano, com os braços balançando depois de apoiarem o corpo na atual posição. Parecia bêbado, torcia a boca e rolava a cabeça de um lado pra outro até ergue-la para o alto e encarar o céu. Foi então que ele disse:

–Tá vendo esse céu? Olha, olha lá, –e apontava pro céu, –já não é o mesmo céu, né? Percebeu como até o céu mudou, cara? Já viu esse tom de azul, olha? Vai esmaecendo e o degradê suave cintila tão tênue, quase imperceptível, você não nota a mudança e aqui no horizonte um roxo e nesse roxo pingam esses pontos alaranjados e amarelos que parecem planetas, ou discos voadores. Diga, se você já viu isso alguma vez na sua vida?

O cara, com as palmas das mãos apoiadas no chão, sustentando o corpo inclinado, contemplava aquele céu e inebriado pela sua descrição poética, só então pude perceber cada detalhe que ele narrava, tendo antes me passado desapercebido. O que era o céu pra mim àquela altura? Uma abóboda bolorenta e sufocante que soprava todas as doenças e vapores mortíferos para me matar ou me tornar tão frágil quanto qualquer homem embaixo dela. Mas eu fiquei ali naquela hora, fazendo companhia para aquele poeta e com ele me entreguei ao entorpecimento espiritual, sensorial, talvez alcançasse, com algum esforço, o nirvana. A plenitude do meu ser, a compreensão do ser humano e do alcance do potencial desse animal curioso. Do que seríamos capazes se esse véu cerrado de soberba caísse desnublando nossa visão? Meus olhos brilhavam e cheio de sonhos o meu coração palpitava embalado por uma esperança nova e qualquer.

Acordei sobressaltado, pareceu que de uma vez a dor irradiava galopante me golpeando sobremaneira. O chão de pedras lisas e frias, agora molhadas, chovia, e o sonho que agitou meu sono, me causaram desconforto e agonia. Quando olhei em volta, o cara, aquele que eu golpeei e depois vi filosofar sobre o estranho céu daqueles dias, tinha sumido. Corri atordoado, procurei nos becos, esquinas, até dentro das caçambas de lixo, nada. As respostas que eu buscava foram todas com ele e minhas esperanças perdidas. Sentei no chão e comecei a chorar. O lugar, sem as naturais emanações do ar, da luz, nem a poeira parecia querer se erguer, dava a impressão de uma pintura barroca, desproporcional, opaca e carente dos detalhes. Eu buscava claro a renascença e percebi a loucura do mundo antes da primeira e verdadeira iluminação, mas também percebi o fascínio da ignorância. Como era a forma de ver o mundo muda diante do desconhecido e como é grande a imaginação e o espírito humano.

Acho que me perdia em tantos devaneios e pensamentos porque o cenário de abandono e destruição me fez ver o mundo de outra maneira e isso na história se repete tanto, que não tem como não fazermos essas comparações tão pertinentes. Agora onde eu estava, distante da orla marítima, mais perto das montanhas e vales, o que via era a morte que me sorria com uma careta arreganhada de deboche e insolência. Uma fenda enorme dividia o vale em dois e no entorno corpos queimados exalavam o cheiro sufocante do enxofre e das vísceras esturricadas. Os corpos pareciam esculturas em posições horrendas, com o propósito intencional de chocar. Vi o que parecia ser um homem, parte do seu corpo se desmanchou em cinzas e o que sobrou debruçava-se agarrando-se à borda da fenda tencionando se jogar, talvez. Ao lado, uma figura com os braços abertos implorando aos céus que a devastação eminente não a fulminasse. Eram tantas representações da morte marcadas à fogo naquelas pobres almas que seria impossível descrever todas. O cheiro e a fumaça putrefata que borbulhava de todas as partes como chaminés do inferno me fizeram muito mal e cai no chão me contorcendo todo, com uma dor forte no estômago. Cai sobre um corpo, senti os frágeis ossos se desfazerem unidos apenas por uma fina membrana de crosta queimada e guinchei de dor como um animal ao ser abatido.

Ao acordar novamente, o cheiro do vomito seco na roupa nem me incomodou, tudo em volta era muito pior que vomito seco. O próprio cheiro hediondo do ambiente maquiava qualquer outro cheiro, mais eficientemente que maquiagem de prostituta esconde suas feições descentes. Eu ouvia gritos, gemidos, horríveis embaralhamentos sonoros que destruíam qualquer condição de sanidade da alma. Faziam você arrancar os cabelos, se matar, sem pestanejar. Destroçado, só via morte e desespero, sem esperança. Agora, no centro da cidade o caos era bem maior e ninguém via de onde vinha a morte. Só caia do céu, o fogo e consumia tudo e todos. Entrei num bar e encontrei um bêbado agarrado a uma garrafa de cachaça. Dei a volta no balcão, peguei uma garrafa de rum, um copo e fiz companhia ao bêbado.

–Vamos brindar, velho! Ao fim do mundo!

–Ao fim do mundo, seu tolo! Se vai acabar com fogo, vamos ficar de fogo! Ah, há, há, há! –E o velho me abraçou e ficamos ali no bar contando causos e as mazelas das nossas vidas um pro outro. O mundo acabando lá fora e nós se acabando de beber aqui dentro.