A LENDA DA MONTANHA DO DIABO

"Há mais coisas entre o Céu e a Terra

do que sonha nossa vã Filosofia".

WILLIAM SHAKESPEARE

Nos idos de1800 a aldeia das Minas Gerais de montanhas infindas amanheceu sabendo, todo mundo nas casas cochichando sobre o assunto, para que os deuses não os ouvissem. Era para ser segredo porém, como diz a sabedoria popular, "segredo dividido com 1 é meio segredo... com dois é segredo nenhum" e, por um acaso qualquer, o vilarejo de mineiros mineiros ficara sabendo. Seu herói maior, "BRINCO DOURADO", terror dos "capoeiras" locais -- mais admirado do que temido -- aceitara virar mestre, seu professor estava muito velho e queria lhe passar a função de mestre da Dança-Luta. Só que isso era feito na tal "Montanha do Diabo", cercada de lendas e pavores, todos a temiam, quem nela subia "desaparecia", nunca mais era visto. Só seu mestre-capoeira desafiara o Destino e voltara... 50 anos atrás, e estava ali para provar.

Não houve choro, pedido ou imprecação que demovesse "Brinco Dourado" da intenção de subir, seu mestre lhe cobrara isso. Com a população em peso a gritar e protestar, professor e discípulo, mestre e aluno iniciaram seu calvário. A população não arredou pé, armaram cabanas no sopé e fizeram vigília, esperando a volta. Viram as sombras dos 2 valentes esvanecendo entre as brumas da manhã, nuvens coroando o cume da montanha. O que ninguém sabia era que havia imensa caverna no cimo pedregoso.

-- "Veja bem o que você quer... a partir daqui não tem volta, desista enquanto é tempo"!, fala o velho "capoeira", sondando-o.

-- "Sigo meu mestre onde êle fôr, a Vida não tem graça sem sacrifícios e é a CORAGEM que define um homem" !

Entraram... meio-dia lá fora, a luz solar quebrando a escuridão opressiva do interior da caverna. Vislumbrou um "portal" de madeira maciça, de construção recente, correntes por todo lado. Seu mestre ordenou que ficasse embaixo dele e acorrentou mãos e pés de "Brinco Dourado". A partir disso, sempre que dormisse e o corpo pendesse esticando os pulmões se sentiria sufocado, bem perto da Morte. O frio terrível da noite no ápice da montanha era só mais uma tortura e a sede e fome enfraqueciam seu espírito. O mestre sumiu, tragado pela escuridão... "Brinco Dourado" começou a arrepender-se de seu desejo estúpido, a vida anterior era tão legal ! Passou uma noite horrível, viu seres das trevas aproximarem-se, demônios o dilaceravam... tudo ilusão da mente, eram as dores que as correntes produziam no corpo e o cérebro delirante fantasiava.

Viu todos os antepassados lhe visitando, pais, avós, bisavós, suas outras encarnações, a Vida entre os astecas, a convivência com africanos em Luanda, o início de tudo na China de KungFu e TaiChi. Estava já na quinta ou sexta encarnação, prestes a virar estrela, iluminando com seu brilho a esfera celeste... mas até lá muita água ía rolar sob a ponte. Só o instinto de sobrevivência o manteve vivo ! Quando o corpo estava perto de sucumbir em sufocação fatal, o cérebro religava a vontade de viver e "Brinco" se levantava para nova rodada de suplício. No terceiro dia, já noitinha, recebeu tapinhas no rosto e uma caneca com um líquido qualquer que lhe recuperou as forças e o juízo perfeito.

-- "Ainda podes desistir... mas o segredo dessa caverna precisa continuar, por isso tantos morreram" !, preveniu-o o ancião.

-- "Já cheguei até aqui, vou até o fim agora" !

Seguindo o mestre, mergulharam ambos escuridão adentro. De repente, a luz de uma fogueira iluminou o fundo do túnel e, refletindo-se nas paredes cheias de pedras preciosas, clareou tudo ao seu redor. Viu com espanto 2 fileiras de homens de todas as raças, roupas exóticas, perfilados a saudá-lo, reverenciando-o, êle muito feliz.

-- "Não se iluda, jovem, cumprimentam a mim, não a você... são todos mestres, famosos em seu tempo. Você será um deles, TALVEZ" !

-- "Para você se tornar mestre, vamos testar sua força de vontade e sua coragem, Capoeira você já sabe ! Terás que andar sobre um "tapete" de brasa e, adiante, transportar nos braços um caldeirão de água fervente até aquele altar. Nem pense em desistir, não viverás para "chorar tua vergonha", eu mesmo irei matá-lo. Ande devagar sobre as brasas, para dar tempo que cada pé esfrie ou ficarás seriamente queimado. Ande logo, isso termina esta noite" !

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Na manhã do quarto dia a população viu atônita um estropiado "Brinco Dourado" descendo a montanha maldita, braços e pés muito feridos, queimados. "Fôra ao Inferno e voltara vivo !", disseram os aldeões. Do seu mestre, nem sombra... restou o cordão de ouro, um berimbau, que surgiu no seu pescoço naquela manhã. "Brinco Dourado" viveu e morreu cultuado e admirado por todos.

Reencarnou numa certa "Vila Sorriso", mais conhecida como Icoaraci, na região de Belém ainda com a floresta amazônica intacta. Lá voltou a fazer o mesmo sucesso e foi onde o conheci em 1990, tendo o privilégio e a honra de ouvir de sua boca sua história, narrada acima. (*1) "Brinco" ficou pouco tempo entre nós, uma solerte arraia encerrou -- com seu ferrão -- seus dias na Terra... virou estrela de intenso brilho no firmamento ou, quem sabe, reviverá em alguma cidade moderna.

"NATO" AZEVEDO (em 24/10/2020, às 6hs)

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OBS: (*1) segundo mestre LUÍS CARLOS, criador do Grupo "BERIMBAU BRASIL", uma equipe de filmagem de Macapá ficou tão empolgada com as estórias de "Brinco Dourado" que teriam gravado 2 entrevistas com o hilário, divertido e criativo "capoeira Angola", inesquecível para quantos o conheceram. SALVE, MESTRE... onde quer que estejas !!!