Ela mesma, a outra

Ela mesma, a outra

Ia andando calmamente pela rua, quando surpreendentemente se viu passando dentro de um ônibus. Piscou os olhos estupefata. Pensou: __Deus do céu olhai por mim! Era ela mesma! Inconfundível. O mesmo cabelo, os mesmos óculos, a mesma boca, o mesmo batom, a mesma blusa floreada. Como pudera aquilo acontecer? O ônibus parou num ponto próximo e ela imediatamente correu até alcanca-lo. Não teve coragem de entrar. Ficou lá de um canto próximo espiando ela mesma, a outra, com o canto dos olhos.

Percebeu que um senhor sentado ao lado dela mesma, a outra, lá dentro do ônibus, também se dera conta do fato e agora olhava as duas com grande espanto e admiracão. Pensou em entrar e puxar conversa aquele senhor e dizer-lhe que aquela que estava dentro ônibus e ela mesma, eram uma só pessoa (?), mas que ela mesma não saberia lhe explicar como aquilo ocorrera.

Desistiu. Decididamente não era uma boa idéia. Poderiam certamente pensarem que ela era louca e isso ela não era.

E agora o que fazer? Ela mesma, a outra, lá dentro do ônibus teve um acesso de tosse; e a tosse que tivera era igualzinha á sua. Uma tosse seca, fina, quase que inimitável. Ela mesma, a outra, tossindo dentro do ônibus, enquanto que ela mesma, a verdadeira (?) pregada na calcada (se) assistindo.

Como era possível ser duas, quando sempre tivera a certeza de que era apenas uma? Um sonho explicaria essa situacao, mas já se beliscara inúmeras vezes e constatara que estava desperta.

Pensou então em entrar e sentar-se ao lado dela mesma, a outra e faze-la sua novamente. Mas como? Não sabia como ela mesma, a outra saíra de dentro dela mesma, portanto não saberia como recoloca-la novamente dentro de si!

Será que conversando em voz baixa com a ela mesma, a outra, a convenceria a voltar pra dentro dela mesma? Mas e se ela mesma, a outra, se recusasse ? Se ela mesma, a outra, brigasse com unhas e dentes para continuar vivendo fora dela? E se ela saísse perdedora dessa contenda e ao invés de fazer voltar aquela metade, aquela outra ela mesma que fugira, fosse subjugada e obrigada a viver dentro dela mesma a outra?

E se ela mesma a outra, fosse uma daquelas partes desconhecidas que muitos dizem viver dentro de nós, aquela parte insana, aquela parte louca sobre a qual não temos nenhum controle, aquela parte que a gente vê as pessoas internadas no manicômio exibirem? Aquela parte que a gente não sabe como aflora e quando se vê já se está doido varrido?

Doido de atirar pedras, de rir atoa para as pessoas que passam, de se lancar de cima dos edifícios, de saltar de cima das pontes, de se atirar na frente dos ônibus, de falar com ausentes, de plantar flores, de ver pessoas coisas, vultos, fantasmas, de sair a esmo pelo mundo procurando algo ou alguém que não se sabe bem quem é ou deixou de ser, de ficar perdido dentro de si mesmo, de não saber nem a própria identidade, cidade onde nasceu, de não saber de onde veio, muito menos para onde se vai.

Ficaria então ela mesma , a verdadeira, aprisionada dentro dessa desconhecida, vendo essa parte insana fazer e agir de modo impensável, consciente dessa loucura, dessa parte insensata, das maluquices que porventura essa parte viesse fazer; e ela, lúcida, consciente, sã de corpo e alma sem nada poder fazer.

Foi obrigada a interromper esses pensamentos porque o ônibus recomecaria a andar. Correu a passos miúdos e rápida embarcou.

O cobrador olhou ela e também ela mesma, a outra, sentada placidamente num banco lendo uma revista de modas e ergueu as sombrancelhas bastante espantado.

Se ele lhe perguntasse qualquer coisa se faria de muda. Correria o risco de deixar ela mesma, a outra, dar as explicacões necessárias para desfazer aquele mal entendido. Afinal fora ela quem arrumara aquela confusão ao sair, sem que ela percebesse, de dentro dela mesma.

O cobrador se aquietou. De certo houvera pensado que era uma brincadeira de duas irmãs gêmeas.

Com a máxima discricão se pôs a observar ela mesma, a outra, na tentativa de entender o que estava acontecendo, pois afinal talvez o que estava se passando fosse uma simples ilusão de ótica, uma sósia sua, pois dizem que o mundo tá cheio de gente com a cara da gente. Mas infelizmente não era. Gente com a cara tudo bem! Mas vejam só: o mesma blusa, o mesmo cabelo, o mesmo batom, os mesmos óculos. Assim também era demais!

Decidiu passar na roleta somente quando ela mesma, a outra, se preparasse para descer.

Quando o ônibus se aproximou do relógio da praca ela mesma, a outra se levantou. Ôpa! Deveria saber de antemão que ela mesma, a outra desceria no ponto que ela sempre descera.

Isso estava ficando deveras perigoso! Dito e feito! Quando o ônibus chegou perto do relógio, ela mesma, a outra, pegou sua bolsa, guardou a revista que estivera lendo, tocou o alarme e se preparou para descer.

Desceu então no ponto costumeiro perto do relógio, ao lado da farmácia, atravessou a rua, passou por debaixo do out-door de cerveja, virou a direita, subiu uma pequena rampa e la na frente, tomou uma ruela e andou por uma calcada de paralelepípedos, até chegar ao número 101.

Foi então que ela mesma, a verdadeira se apressou e passou a frente dela mesma, a outra. Chegaram quase juntas ao portão. Olhou então de lado e percebeu que a outra estacara os passos e olhava calidamente o chão.

Ela mesma, a outra parecia triste. Deu uma vontade imensa de chamar ela mesma a outra para entrar também, pois aquela casa era também dela.

Mas achou que a vida seria pequena e muito atribulada para que ela mesma, a outra, vivesse uma vida fora dela. E mesmo que fosse uma outra vida como será que ela se sentiria ao acordar todos os dias e vendo uma parte sua fora de si? Ainda não soubera precisar qual parte dela se dissociara de si mesma e estava vivendo fora de si.

A outra que era ela mesma, estava no portão continuava ao portão, provavelmente esperando um convite para entrar.

Ela não teve coragem de convida-la. Deu um sorriso brando e estendeu a mão num gesto triste de adeus. A outra que era ela mesma, respondeu ao gesto, virou-se lentamente de costas e foi embora devargazinho.

Ela mesma, ficou parada por um bom tempo com a mão na macaneta da porta, pensando em tudo o que acabara de acontecer. Balancou a cabeca num gesto de assombro. ___Deus do céu estaria ficando louca?