Feitiço contra o Feiticeiro

Feitiço contra o Feiticeiro

(Publicada no livro “Feitiço Contra o Feiticeiro”)

Antes de mais nada, meu caro,

Agradeço se você

Não deixar de ler esta história

E depois talvez dizer

Que ela não tá com nada

E que nunca mais vai ler.

Ela fala de um homem

Que por força da avareza

Entregou-se ao Maligno

Em troca de vil riqueza

Riqueza esta que depois

Se transformou em tristeza.

Ele foi ser do Diabo

Que logo após lhe pediu

Sangue muito, muito sangue

Mas ele não o ouviu

Tudo o que o Satã falou

Entrou num ouvido e saiu.

Disse que sangue não dava

Como de fato não deu

Então o Satã lhe disse:

Seu infame, seu ateu,

Não vou te dar mais riquezas

Seu filho de jegue hebreu.

O Homem se arretou

E chegou para o Satã

E falou: - Ó seu Diabo

Seu filho de mãe anã

Eu quero a minha riqueza

Senão eu fico tantã.

O Diabo arrepiou,

Deu um pulo para trás

Arregalou bem o olhos

E falou: - Ó seu Caifás,

Ou tu me dá o teu sangue

Ou não me verás jamais.

Se tu me der o teu sangue

Riquezas muitas te dou

Faço contrato contigo

Esqueço o que tu falou

Te dou tudo que tu queres

Até o mundo te dou.

Não te dou seu vagabundo

Meu sangue não vou te dar

Mas uma coisa prometo:

À minha mulher vou falar

Tentar convencer a besta

Para o seu sangue ofertar.

Então fica certo assim

Estamos bem combinados

Já que você se recusa

Que fique então recusado

Mas eu quero muito sangue

Pra ficar tudo acertado.

Conversaram e se entenderam

Sobre o que iriam fazer:

Tirar o sangue da mulher

Para a Satã oferecer

Para logo depois disso

O homem se enriquecer.

Logo que chegou em casa

Foi chamando sua mulher:

Ó Chiquinha, vem aqui,

Traga logo “dois talher”

Para eu tirar o teu sangue

Para dar ao Lucifer.

Oh marido, tu tá doido?

O que é que há, meu irmão?

Ta achando que eu sou besta?

Já fui, hoje sou não.

Eu não dôo meu sangue a ninguém

Nem que estiver no caixão.

Mas mulher, tu não entendeu...

Eu não falei em doar.

Nós vamos é fazer troca

Com aquele homem de lá...

Tu dá sangue pro sacana

Para riqueza ele nos dar.

Mesmo assim, Chico Valente

Meu sangue tu não vai ver

Nem tampouco esse tal homem

Que nos vai enriquecer

Por que não damos o menino

Pequeno que vai nascer?

Tu tá doida, minha mulher?

Acha que ele vai querer

Um filho que nem nasceu

(homem ou mulher vai ser ?)

O Satã quer sangue agora

Não vai esperar o nenê nascer.

Que ele espere ou não

Um jeito tu tem que dar

Porque meu sangue vermelho

Ele nunca vai cheirar

Nem uma gota sequer

Quando meu dedo cortar.

Tá bem mulher orgulhosa

Amanha vou conversar

Com aquele Satanás

E você vai me pagar

Se o Diabo do Cão

Não quiser mais esperar.

Eu não pago nada, homem

Quem mandou tu ir caçar

Riqueza para enriquecer

E depois não querer dar

Meio litro de sangue ao cão

Para ele se banhar?

No outro dia lá foi ele

Com o cão se encontrar

Mas o que o cão pediu

Ele não tinha para dar

E então se acanhou

De puro se apresentar.

O cão sentiu o seu cheiro

Mesmo sem se aproximar

Da toca do Satanás

Para depois conversar

Sobre o sangue da mulher

Que ela não quis lhe dar.

Quando o mesmo chegou perto

Sem nada a carregar

O cão ficou irritado

E foi logo perguntar:

Cadê o sangue, safado?

Acho que vou te matar.

Por favor seu Cão bondoso

Deixa eu primeiro explicar

Ontem quando eu fui chegando

E quando fui conversar

Minha mulher quase me mata

Só por no sangue falar.

E o que é que eu tenho com isto

Seu safado, sem vergonha,

Seu malandro, vagabundo,

Seu banana, seu pamonha,

Incapaz e sem palavra,

Cafajeste, sem-vergonha?

- Calma aí, seu Satanás,

Espere eu te falar

Tenho um filho que vai nascer

Eu posso ele te dar

Para não dar o sangue meu

Que é difícil de tirar.

Aceito, então, meu amigo,

A criança para pagar

O sangue que teu não deu

Nem tua mulher quis me dar

Mas quanto tempo ainda falta

Para teu nenê vir para cá?

Falta pouco, meu patrão:

Dois meses para completar

Os nove que é normal

Para a mulher vir a falar

Que já tá sentindo as dores

E que o nenê vai ganhar.

Ainda bem. Porque senão

Logo eu ia te matar

Para tu deixar de ser besta

Pois queria me enganar:

Depois de ficar bem rico

O sangue não ia dar.

Mas fique despreocupado

Que o nenê eu vou te dar

Mas quero ficar mais rico

Quero mais me enricar

Quero uma casa em Dallas

Uma fazenda em “Portugá.”

Quero ainda muita coisa

Que você tem que me dar:

Quero a Torre Eiffel para mim

Para no meu quintal botar

Para brincar lá todo dia,

Pra pular, brincar, saltar.

Quero a Estátua da Liberdade

Para a tudo eu libertar.

Quero o Egito em minha casa

A França no Amapá

Quero a Grécia lá na China

E a China no Pará.

Quero a lua e quero o sol

E quero também o mar

Quero o Brasil lá em Roma

Quero Marte no Paraná

Quero o Paraná na Holanda

E a Holanda em Marabá.

Quero um gravador que grave

Antes da gente pensar

Uma camisa que esquente

Quando o frio vier perturbar

Quero um galo que bote ovo

Quero um peru de colar.

Quero viver no futuro

E no passado morar

Passar tempo no presente

Fazer o tempo voltar

Fazer tudo que não posso

Fazer o tempo parar.

Eu dou tudo que tu queres

Para você me ofertar

Sangue teu ou de tua esposa

Ou do nenê que tá lá

Na barriga de Chiquinha

Depois que ela ganhar.

Eu já falei que te dou

E vou de novo falar

Não volto no que falei

O nenê eu vou te dar

Nem que eu mate minha mulher

Para o nenê eu tomar.

Tomara que seja mesmo

O que você está falando

Porque se caso contrário

Você acabar falhando

Eu então não te dou nada

E ainda acabo te matando.

O que é isso, seu diabo

Tu não tá acreditando?

Pois então segura aqui

Meu sangue estou ofertando

Pode fazer o testamento

Embaixo estou assinando.

O Satã mais que depressa

Agarrou o dedo do herói

Tascou-lhe tamanha dentada

Não se importando se dói

Chupou sangue pra valer

Acabou com nosso herói.

Pára, pára seu diabo

Pára logo de chupar

Meu sangue não é garapa

Ta perto de acabar

Se você não parar logo

Você vai é me matar.

Foi então que ele parou

Antes do sangue acabar

E soltou o seu Chiquim

Que saiu a cambalear

Quase morto e já sem sangue

De tanto o Satã chupar.

Chegou em casa quase morto

Ao chegar, caiu por não agüentar

Andar sem sangue pelas ruas da cidade

Quando a mulher pegou ele pra levar

Ao hospital pra salvar da morte rápida

Ele logo começou a levantar.

Espantou-se quando viu aquele homem

Que estava quase morto, levantar.

Foi Satã que deu força a Chiquim

E fez ele logo se recuperar

Pra quando forte o pobre estivesse

Mais sangue a Satã ter que doar.

Aí Chiquim falou para sua mulher

Que o seu filho o cão logo aceitou

Mas que bebeu o seu sangue quase todo

E que não sabe se o cão já lhe deixou

Se o sangue tinha pago toda a dívida

Se algum débito com o cão ele deixou.

Então falou a mulher: - Meu Chiquim

Tá faltando dar a ele a nossa filha

Que ontem mesmo nasceu e tá falando

Que não vai morar com o cão por nem um dia

Que à noite ela vai fugir daqui

Achar lugar para morar durante o dia.

Estou achando que esse tal de Lucifer

Não vai gostar do jeito desta mulher

Não vai querer essa moça religiosa

(não quer cão, não quer vício, nem quer “mé”)

que gosta muito de viver pelas igrejas

e que no peito tem algo chamado fé.

Mulher, tu tá falando a verdade

É verdade o que tu está a falar?

Me ajuda minha filha, por favor

Fazer o cão desistir, deixar pra lá

Porque já temos tudo o que pedimos

E não queremos nada mais desse inferná.

Meu marido, te vire com teu trem

Não quero nada com esse tal de Belzebu

Tu que quis ficar com ele, então que fique

Leve ele e tudo dele só para tu

Não tenho nada com esse tal de Satanás

Esse pé torto que é chamado Belzebu.

Marido, vou embora com minha filha

Não quero mais morar contigo neste lar

Porque tu vive com esse tal de Satanás

Não vai à igreja e nem gosta de rezar

Pois então fique aqui com teu capeta

Que eu vou embora para nunca mais voltar.

Pode ir sua ingrata descarada

Mulher falsa, sem caráter, sem moral

Fico aqui com meu cão e meu satã

Vivo sempre no melhor, longe do mal

Sou sozinho e quero deixar esse besta

Tal de cão do inferno e infernal.

Vou amanhã para dizer ao Satanás

Que não quero mais as coisas que me deu

Vou entregar tudo, tudo amanhã

Não quero nada do que ele me cedeu

Vou viver só, no mundo, sem ninguém

E sem nada, nada, nada do que é seu.

Meu amigo, vou dizer tudo que sei

Quando Chico foi falar com Satanás

Para dizer que não mais queria nada

E que o cão deixasse ele em paz

O tal cão deu risada de desprezo

E falou que não mais voltava atrás.

A filha de Chico, religiosa, se salvou

Porque nada sobre o caso ela sabia

Foi entregue ao Satã quando nasceu

Mas de nada, nada mesmo ela sabia

Só mesmo Dona Chica e o velho Chico

Que trocou tudo pela sua filha.

A velha Chica e o esposo foram levados

Para o inferno, com tudo o que possuíam

Para serem assados como porco no espeto

Para pagar os débitos que eles deviam

Foram assados no braseiro do inferno

Para deixarem de ser vaidosos neste dia.

A menina, para o inferno não foi não.

Só os pais foram ao inferno pra pagar

Os pecados que fizerem quando deram

Sua filha ao Satã para enricar

Mas pagaram com a alma no inferno

Para nunca, nunca, nunca mais voltar.

Aquele homem avarento que queria

Ficar rico sem um prego levantar

Dando a filha pra sofrer, sem merecer

Foi pagar por tudo lá no infernal

O Feitiço Voltou contra o Feiticeiro

E voltou de uma vez para ficar.

Achei bom quando foi para o inferno

Para pagar tudo o que ele devia

E que queria ao Diabo enganar

Pagando a conta com a sua própria filha

Que não devia nada ao rei do mal, Satã

Ela ia pagar pelo que o pai devia.

Aqui termino esta história de seu Chico

Agradeço muito pela atenção

Por ter ouvido ou lido esta história

Que é verdadeira e também é ficção

Até um dia meu amigo ou amiga

Aceite um abraço de um grande amigão.

(12 de abril de 1984)

A história de "Feitiço contra o Feiticeiro", um cordel de 12 de abril de 1984, nos leva ao mundo de avareza, traição e pacto com o Diabo. Nesse conto, conhecemos Chico Valente, um homem que se entregou ao maligno em busca de riqueza, mas acabou por se deparar com as consequências de suas ações.

Chico Valente, cego pela ambição, não hesitou em fazer um pacto com o Diabo em troca de riquezas. No entanto, quando o Diabo pediu seu sangue como parte do acordo, Chico tentou enrolar o maligno, querendo substituir seu próprio sangue pelo da esposa ou até mesmo do filho que estava para nascer.

A esposa de Chico, Chiquinha, se recusou a doar seu sangue e, apesar das chantagens e ameaças do Diabo, a família não cedeu. O Diabo acabou tomando o pouco sangue de Chico e deixando-o quase morto.

Após esse episódio, Chiquinha e seu filho decidiram abandonar Chico e viver longe do maligno. Chico, desesperado, tentou se redimir com o Diabo, mas suas artimanhas não funcionaram, e ele foi levado ao inferno para pagar por seus pecados.

O conto serve como uma lição sobre a avareza e os perigos de fazer acordos com forças malignas. A narrativa envolve elementos de mistério e suspense, mantendo o leitor intrigado até o final.

A poética do cordel enriquece a trama, com versos rimados e estrutura tradicional do gênero. O autor consegue transmitir a história de forma envolvente, utilizando a riqueza do repertório cultural nordestino.

"Feitiço contra o Feiticeiro" é um exemplo marcante de como a literatura de cordel pode entreter, ensinar e envolver o leitor com suas histórias que misturam realidade e fantasia. Ao mesmo tempo, alerta sobre os perigos da ganância e da busca desenfreada por riquezas, mostrando que nem sempre vale a pena fazer um pacto com o desconhecido.

Valdeck Almeida de Jesus
Enviado por Valdeck Almeida de Jesus em 21/08/2009
Reeditado em 25/07/2023
Código do texto: T1766130
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