UMA PAIXÃO DIFERENTE
O dia de Sexta Santa
No calendário sagrado
Do nordestino devoto
Não pode ser profanado
Por nada que desagrade
O Senhor crucificado.
Se deve comer só peixe,
Não proferir palavrão,
Esquecer a tal cachaça,
Fazer o bem ao irmão,
Confessar cada pecado,
Fazer jejum e oração.
Mas num pequeno lugar,
Por serrotes enlaçado,
O Prefeito maquinava
Se tornar um deputado,
Então logo resolveu
Fazer comício sagrado.
Se juntando com o Padre,
Meia dúzia de beatas
E uns correligionários,
Como faz com passeatas,
Resolveu fazer ali
Uma Paixão bem barata.
Intentava pelas ruas
Fazer a encenação
Do sofrer de Jesus Cristo
Té à crucificação
Usando cada habitante
Pra não gastar um tostão.
Acertaram que fariam
Como foi há dois mil anos
Pelas ruas da cidade.
Logo traçaram os planos
E chamaram as pessoas
Pela emissora de Albano.
Logo a nota se espalhou.
Muita gente apareceu
Para o teatro ao ar livre,
E desde o que nunca leu
Té o mais culto queria
Ser o Filho que morreu.
Como veio muita gente
Se dispondo a trabalhar,
Foi muito grande a labuta
Da Paróquia do lugar
Para a escolha fazer bem
Sem a ninguém desgostar.
Escolher os figurantes
Não foi tarefa difícil,
Pois tinha desde o senil
Ao mais jovem cidadão,
Todos querendo ajudar
Na linda festa de abril.
A escolha dos principais,
Porém foi dificultosa,
Pois, dos que se assemelhavam,
Somente a Mãe Gloriosa
Seria representada
Por Beata fervorosa.
Barbudo como Jesus
Havia Mané Galdino,
Um feirante analfabeto
E que quando era menino
Só freqüentava a igreja
Pra aprender tocar o sino.
Pilatos era Hermógenes,
Proprietário do Cartório
Que não ia muito à missa,
Mas através de ofertório
Pensava ser um bom homem
E cristão bom e notório.
Para Pedro escolheram
Seu Chiquinho o pescador
Que como os outros também
Não era freqüentador
Nem sabia dos sermões
Do lar de Nosso Senhor.
Por ordem, o Delegado
Foi pedir para um rapaz,
Único preso dali,
O papel de Barrabás,
Pois lhe dissera o apenado
Do voto que fez aos pais.
Por fim a João Carrasco,
Um forte e bruto marchante,
Deram infame papel
De açoitador torturante.
Não gostava de igreja,
Mas isso o deixou pedante.
Escolhidos os atores,
Começaram os ensaios,
Pois, tendo um tempo encurtado,
Teriam que como raios
Transformá-los bem ligeiro
Em divinos papagaios.
Foram dias e mais dias
De forte preparação.
O Prefeito e sua equipe
Criaram logo um “verbão”
Pra, de modo escandaloso,
Ter dinheiro em suas mãos.
Depois de tudo ensaiado
Para o dia da Paixão,
Foram feitos mil panfletos
Para toda a região,
E muitas outras cidades
Vieram pra ocasião.
A prefeitura era o espaço
Onde Pôncio, o tal Pilatos,
Lavaria suas mãos.
Pela ruas sem asfalto,
Cristo levaria a cruz.
Na capela, o fim do fato.
Frente à grande multidão,
O Prefeito aproveitou
E fez sua encenação,
Pois no palco discursou
Mirando em cada devoto
Um importante eleitor.
Depois da bênção do Padre
E a pena d’água nas mãos,
Mané Galdino seguiu
Por dentro da multidão,
Sob a cruz e as chibatadas
Do forte centurião.
Mesmo tendo se pedido
Pra Carrasco não beber,
Não havia garantia
De que fosse obedecer.
Quatro garrafas de vinho,
Bebeu para não tremer.
Isso o levou a esquecer
O que fora combinado:
De bater sem muita força
Pelo corpo do açoitado.
E Mané tinha na cruz
Seu escudo emadeirado.
Maria, a Beata Mãe,
Agora não mais chorava
Como havia praticado,
Pois ela temia a raiva
No semblante de Galdino
Que de verdade apanhava.
Depois de tanto sofrer,
Esgotar a paciência
E se livrar do madeiro,
Agarrou-se com violência
Àquele que descumpriu
O chicotar com cadência.
Houve grande corre-corre
No meio da multidão,
Se formou um ringue humano
Pra ver a confrontação
Dos homens se debatendo
Entre murro e pescoção.
O Prefeito preocupado
Tratou logo de intervir
Pra não estragar a festa
E o intento de subir
Mais um degrau na política
Pelo voto dos dali.
Pediu aos dois que brigavam
Pra ter calma e paciência;
Não chamou nem a polícia,
Pois aquela desavença
Foi só uma confusão
Que acabou sem resistência.
“Seu prefeito me adescurpe,
Não dá pra continuá,
Pois esse felá da puta
Resolveu se embebedá!
Olhe aqui tô lapiado
De tanto dele apanhá!”
Ao perceber que Carrasco
Pro Prefeito foi falando
Que nada de errado fez,
Galdino foi explicando
Que tudo foi culpa dele
E a cena estava deixando.
Notando que com palavras
Não podia convencer
O coitado a retornar,
Apressou-se em lhe dizer
Que os favores concedidos
Teria que agradecer.
Vendo o Padre pedindo,
O povo desconsolado,
O convite da família
E Carrasco resignado,
Requereu que se cumprisse
O que se havia treinado.
E tudo recomeçou.
Toda a turba acompanhava
Em silêncio e contrição
O que se desenrolava
Como fora combinado,
Enquanto o Chefão vibrava.
Mas, perto da Via-crúcis,
De repente numa esquina,
Bigode de Aço saltou
Com reprovação ferina
Já com a faca na mão,
Jurando grande chacina.
“Alto lá bando de herege!!
Bando de incréu comungado!!
Meu zóio num acredita
Que, como um boi humilhado,
Nosso Sinhô tá sofrendo
E cês tá tudim calado!”
Dizendo isso ele riscou
A peixeira pelo chão
Como um romano valente;
Bem no bucho de João
Foi finalmente o destino
D’arma branca em sua mão.
Sem polícia por perto,
O Chefão se escafedeu;
Galdino embaixo da cruz,
Com temor se rebaixou;
Enquanto o pobre João
Desabou e estrebuchou.
Ninguém quis se aproximar.
Mas, ao ver que era Mané,
Ficou foi estupefato:
“Num credito que tu é
Nosso Sinhô consagrado
Em quem sempre tive fé!”
“Meu Deus, num acredito!
Oh, cumpade Bigodão,
Que você veio fazer
Essa grande confusão!
Isso tudo é de mentira,
Tudo é só encenação!”
Nisso o Prefeito encontrou
Os dois soldados num bar,
Contou o que se passava,
E eles correrão pra lá.
Cada qual se preparou
Pro que pudesse encontrar.
No centro da multidão:
Galdino embaixo da cruz,
Beata contrita orando,
Carrasco quase sem luz,
Bigode ainda pensando
Merecer um grande jus.
Com todo aquele furdunço
Os soldados foram dando
Ligeira voz de prisão.
Bigode se desarmando
E, ainda vendo verdade,
Assim se foi entregando.
Carrasco foi conduzido
P’ras bandas da capital.
E tudo então não passou
Dum fiasco eleitoral
Por se pensar que com Fé
Inda se constrói curral.