A cabaça de 17 litros

Vou te contar uma estória,

A Odisséia sertaneja,

Mesma a vida uma peleja

Não sai da nossa memória,

Hoje pra mim é vitória

Está vivo no momento

Pra contar meu sofrimento,

Não é coisa pra risada

Eu nunca prestei pra enxada,

Pior pra tocar jumento.

Era uma seca encrespada

No ano de oitenta e dois,

Acabaram nossos bois

Nessa faminta cruzada,

Eu na beira da estrada

Por vovô Dó fui chamado

Para tocar o Tronchado

Em direção do terreiro,

- Esse jegue é serieiro

E você tome cuidado!

Bicho ruim só embaça,

No lombo pôs a cangalha,

Não sei por que a trapalha,

Dois barris e uma cabaça,

-Agora você não faça,

Loucura na ribanceira!

Cuidado com a ladeira

Na subida do Riacho,

Procure o lugar mais baixo,

Cuidado com a carreira!

Quando cheguei ao lugar

Onde pediu atenção

Peguei uma vara no chão,

Arrochei sem nem pensar

O que vovô quis falar

-“Cuidado com a carreira”!

Nunca faça essa besteira,

Bater na orelha do bicho,

-O asno só de capricho

Quis deitar na ribanceira...

Eu corri pra segurar,

Com a força d’um menino;

Pense lá que desatino

Eu tentando escorar,

Os zoios pra estourar,

Meu ombro quase torando,

O jegue velho berrando,

Veja que bela trapaça,

Quase que quebra a cabaça

E eu embaixo xingando.

Minha sorte é que vovô

Sabia quem era eu,

Logo então se arrependeu,

Bateu nele um temor;

Ele um grande professor

Botar-me nessa jornada,

Eu, com minha trapalhada

Só fazia tudo errado,

O velho chegou suado

Pra me acudir da cilada.

Depois de tudo ajeitado

Ele aí me perguntou

Como você arrumou

Esse labacé danado,

Quase que mata o coitado

Desse jumento cargueiro,

Ele até é meio ronceiro,

Mas nunca deitou c’a carga,

Vez por outra faz farra

Quando encontra um mau tropeiro.

O senhor não me falou,

Ter cuidado no riacho?

Bati por cima e por baixo

Que o marmeleiro quebrou,

Foi aí onde empacou

E deitou com a cangalha,

Sei que não foi minha a falha,

Quase toro o espinhaço,

Usei até meu cachaço

Para agüentar a fornalha.

Quando te pedi cuidado

Era pra ir devagar,

Você nem para pensar

No peso desmantelado

Desse troço agoniado

C’os barris e a cabaça,

Você quase arregaça

A relíquia do seu tio,

Essa escapou por um fio,

Quase acabou em desgraça.

Segui então a viagem

Dessa vez com mais cautela,

Minha cor de amarela

Passou pra verde selvagem,

-Pense agora que bobagem,

Vovô sem querer deixar

Eu sozinho terminar

Minha saga de tropeiro

Mas persuadi ligeiro

E toquei a caminhar.

Quando cheguei na porteira

Dei psiu para o bichim

Mas o infeliz viu o capim

Que estava lá na cocheira,

Ele então fez a carreira

Pensando em se alimentar

Mas enganchou ao passar

Os cambites na cancela,

- Veja que porca miséria

Lá vou eu pra segurar...

A cabaça saltou fora

Escorei no meio dos peitos,

Se hoje tenho um defeito

Foi por peso de outrora;

Meu irmão gritou na hora

-Não deixe o jumento entrar!

Ele vai se apoderar

Do capim que eu tirei

- Ele gritou, eu não sei,

Onde você vai parar!

Vovó arrochou-me uns gritos,

Segure bem a cabaça

Que se não se esbagaça

E são dezessete litros,

Dessas daí só em mitos

De se ver ou ouvir falar,

E eu pra me acabar

Com toda aquela agonia,

Juro que eu já não via

A hora de me aquetá.

Depois de tanto sufoco

Botei-a no chão com cuidado

Meu peito estava rasgado

E meu irmão quase rouco

O peste do jegue mouco

Avançou para o capim,

-Pense num dia ruim

Pra começar a carreira

Dessa tal vida tropeira

Que ali mesmo teve fim!

Ticiano Félix.