Sem a missa do galo, 
       li Machado

         Natal de 2007. 
        Quando deu meia-noite, lembrei-me dos velhos tempos... Esse negócio de recordar o passado sempre me persegue, nas noites natalinas. 
        E olhe que não fui uma criança regularmente visitada por Papai Noel. Muito cedo, avisaram-me que o Bom Velhinho era uma mentira.
        E não faltou que me dissesse que o Papai Noel da minha rua era ninguém mais do que o seu Joaquim do armazém. Por sinal, um sujeito de bem com a vida, vinte e quatro horas do dia.

        Todos os anos, ele retocava sua longa e branca barba, ligeiramente tostada pela fumaça do seu cachimbo, e se vestia de Papai Noel.  Com um enorme saco às costas, ele saía pelas ruelas da minha cidade, com o seu fatigado "Hô! Hô! Hô!"

        Mas, em última análise, o que ele pretendia mesmo era fazer a propaganda da sua casa comercial.  Ganhava uma boa grana. Todos queriam comprar na loja do seu Joaquim, a loja indicada pelo esperto e simpático Noel.

        Como disse, muito cedo eliminaram a figura de São Nicolau da minha existência. Nunca me conformei com isso. Talvez por isso me emocione tanto vendo a meninada abraçando e beijando os Noeis que andam soltos pela cidade. Quase em cada esquina aparece um.

        Na última noite de Natal, enquanto os outros se deliciavam com o suculento peru preparado por Ivone, passei o tempo todo me lembrando da missa do galo.
        Mas da missa do galo do meu tempo de menino; rezada solenemente à meia-noite.  E lá se vão mais de meio-século!

        A cidade parava. As quermeses e os leilões davam um tempo. A banda de música saía dos dobrados para os benditos. Do patamar da igreja de Senhora Santana subiam frágeis foguetes, avisando que a missa ia começar.

        Na velha matriz, luzes, incenso e sinos repicando.
        No altar-mor, o gorducho vigário, mui bem paramentado, celebrava a missa mais bonita de todo o calendário litúrgico. Afinal - diziam os matutos do meu ingênuo sertão cearense dos anos 40 - "Jesus acabara de nascer!"

        A missa do galo dos velhos tempos desapareceu. 
        E não podia ser diferente: hoje quem se arrisca ir às igrejas à meia-noite? Nem para ver a manjedoura. A violência - nas grandes e pequenas cidades - tirou aos católicos a alegria dessa singular devoção. 
        Faz-se, agora, uma missa ali por volta das oito da noite; e nem se diz que é a missa do galo.

                      ***    ***    ***

        Para recordar que essa missa já existiu, voltei, antes do encontro dos ponteiros do meu relógio, às páginas de Machado de Assis. Li, pela enésima vez, o seu conto intitulado Missa do Galo
        Relendo-o, aprimoro o meu debilitado português, e me divirto com o diálogo travado entre o jovem Nogueira  e a coroa Conceição, mulher bonita, mais literalmente traída pelo marido, o escrivão Menezes.

        Alimentados pelo papo, embora discreto, encetado no silêncio da "casa assobradada" de Conceição, eles podiam ter transados, horas antes da missa do galo. 
        Mas a timidez do Nogueira impediu que os dois terminassem na cama, aproveitado a ausência do Menezes, que se "satisfazia" com a outra, naquele Natal dos anos 1860. 

        o jovem Nogueira foi à missa. Mas Conceição lhe não saiu do pensamento. É ele quem confessa: "Durante  a missa, a figura de Conceição interpôs-se mais uma vez, entre mim e o padre..." 
        Nogueira não soubera aproveitar o que seria um belíssimo presente de Natal...

        Sem a missa do galo, li Machado.
        Um belo conto. Contaminado, do começo ao fim, pela malícia deliciosa que o Bruxo imprimiu, com a sutileza de sua pena mestra, nas entrelinhas e em cada frase de sua delicada página natalina. 



        

       

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 29/12/2007
Reeditado em 29/02/2008
Código do texto: T796323