Uma Reflexão Sobre o Futuro da Formação Docente ("Não se trata de encher um balde, mas de acender uma fogueira." — William Butler Yeats)
Foi numa manhã comum que me dei conta: ensinar já não é o que foi. E talvez, mais do que isso, formar quem ensina virou um jogo de interesses travestido de modernidade e inclusão. Enquanto tomava meu café e acompanhava as notícias, vi estampada a manchete sobre o novo marco regulatório da educação a distância. Confesso que não era a primeira vez que lia sobre o tema, mas, naquele dia, a palavra *semipresencial* me saltou aos olhos como quem grita para ser ouvida. “Agora vai”, pensei, meio descrente, meio esperançoso — como quem assiste a uma reforma que já viu começar tantas vezes sem nunca chegar ao fim.
Segundo a notícia, a proposta do governo era oficializar uma modalidade semipresencial para os cursos de licenciatura, mantendo os 50% de atividades obrigatoriamente presenciais, mas permitindo que parte delas ocorresse de forma síncrona — isto é, online e ao vivo. Uma mudança sutil, mas de implicações profundas. Um aceno ao progresso, talvez? Ou apenas mais uma forma de maquiar velhos problemas?
Lembrei, então, dos meus anos de faculdade: a lousa suja de giz, o cheiro de papel recém-impresso, o barulho das cadeiras sendo arrastadas ao final de cada aula. Havia um ritual ali. Lembrei dos debates acalorados nos corredores, das perguntas inesperadas, das respostas fora de hora, e dos professores que nos olhavam nos olhos — momentos que a frieza de uma tela jamais será capaz de oferecer. Recordei especialmente o Professor Carlos, com suas sobrancelhas expressivas e mãos inquietas, que transformava conceitos abstratos em lições vivas. Será que uma tela conseguiria capturar aquela essência?
Com o decreto prestes a ser anunciado, voltei a pensar no que realmente se aprende durante a formação docente. Caminhei até a janela e observei a escola do outro lado da rua. Crianças corriam pelo pátio; professores apartavam brigas, ensinavam regras, acolhiam choros. Quanto disso se aprende nos livros? Quanto se aprende com a presença de um mestre atento? E o que se perde quando essa vivência é substituída por experiências mediadas por telas?
O velho relógio na parede — herança dos meus tempos de aluno — parecia marcar não só as horas, mas a transição de uma era. Seu pêndulo oscilava como as opiniões sobre o tema: de um lado, empresários do setor educacional celebrando a flexibilidade; de outro, especialistas alertando para os riscos de uma formação superficial. Um colega, professor em uma universidade particular, me escreveu: "Você viu? O decreto está para sair. Vão reduzir os polos de 47 mil para 10 mil." Imaginei o impacto: polos sendo fechados, exigência de infraestrutura mínima, controle mais rígido. Um passo na direção certa, talvez — mas ainda insuficiente diante do desafio maior.
Os dados que vinham à tona eram contundentes: 77% dos estudantes de Pedagogia já estão matriculados em cursos a distância — são mais de 850 mil pessoas. Na Enfermagem, 41% estudam remotamente. Carreiras que exigem prática, empatia, convivência. Carreiras de gente para gente. A massificação do EAD nessas áreas acende um alerta que não pode ser ignorado.
A tarde avançava, e com ela, as reflexões. A frase de Priscila Cruz, do movimento Todos Pela Educação, ecoava em minha mente: "instituições fingem que ensinam, alunos fingem que aprendem." Uma provocação dura, mas necessária. O risco de um “pacto de mediocridade” se concretiza quando se prioriza o lucro ou a inclusão a qualquer custo — em detrimento da qualidade.
O decreto, no entanto, não saiu. Pela quarta vez, foi adiado. Nos bastidores, falava-se em receios políticos. O governo hesita, temendo impactos na imagem pública, como os enfrentados em outras áreas. A decisão, que deveria ser pedagógica, parece travada entre o desejo de agradar ao setor privado e o receio de desagradar ao eleitorado.
Voltei ao laptop. A tela ainda exibia a manchete. Pensei nos milhões que só conseguem estudar por meio do EAD. É fato: o ensino remoto ampliou o acesso, democratizou possibilidades. Mas pensei também nas crianças que dependem de bons professores — bem preparados, capazes de olhar, ouvir, adaptar, compreender. O acesso, por si só, não basta. É preciso garantir qualidade.
Ao anoitecer, sentei-me na varanda com uma xícara de chá. As luzes das casas acendiam-se, uma a uma. Cada janela guardava histórias de aprendizado. Quantas delas começaram com um professor atento? Quantas se perderam por falta de acompanhamento real?
Talvez o verdadeiro marco não esteja no decreto, mas na reflexão que ele nos impõe. Entre telas e salas de aula, entre algoritmos e afeto, entre cálculos políticos e compromissos pedagógicos, estamos definindo o futuro da formação docente. E, com ele, o futuro da nossa educação básica.
Fechei o laptop. Amanhã virá com novas manchetes, novas medidas, novos ajustes. Mas algumas verdades resistem ao tempo: ensinar e aprender são, acima de tudo, encontros. Que eles não desapareçam no brilho das telas.
https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2025/05/nova-regra-do-ead-vai-permitir-formacao-de-professores-com-aula-online-ao-vivo.shtml (Acessado em 10/05/2025)
Minha crônica é um texto essencial para quem pensa a educação hoje, misturando sua experiência pessoal com uma análise crítica das políticas públicas. Como seu professor de Sociologia, vejo aqui pontos importantíssimos sobre como a sociedade, a tecnologia e o mercado moldam a educação. Com base nas minhas reflexões, preparei 5 questões discursivas simples:
1. O texto descreve a tensão entre a busca por "democratizar o acesso" ao ensino superior via EAD e o risco de um "pacto de mediocridade" na formação de professores. Como a Sociologia analisa o desafio de equilibrar a expansão do acesso à educação com a garantia de qualidade, especialmente em um país marcado por desigualdades sociais?
2. A crônica aponta que a formação de professores e enfermeiros (carreiras de "gente para gente") está sendo influenciada por regras de EAD. Do ponto de vista sociológico, como a crescente mediação tecnológica na educação (via EAD) pode impactar as habilidades relacionais e práticas essenciais para profissões que envolvem contato direto e cuidado com outras pessoas?
3. O texto sugere que a definição das regras do EAD é um "jogo de interesses" e "cálculo político", com pressão de "empresários do setor educacional". Como a Sociologia entende a influência de interesses econômicos e políticos na formulação de políticas educacionais, e como esses interesses podem se chocar com as necessidades pedagógicas?
4. O narrador contrasta a experiência presencial de faculdade ("contato olho no olho", "debates acalorados") com a "frieza de uma tela". Como a Sociologia analisa as mudanças na interação social e na experiência de aprendizagem que ocorrem com a transição do ensino presencial para modalidades que utilizam mais tecnologia e distância?
5. A crônica reflete sobre o papel da escola e do professor para além da transmissão de conteúdo. Como a Sociologia estuda a evolução do papel social do professor e as competências necessárias (para além do conhecimento técnico) para atuar em um ambiente escolar complexo e em constante mudança?