Herdeira do Pó, do Sal e da Promessa: Memórias Salgadas de Um Hadassim.

Herdeira do Pó, do Sal e da Promessa: Memórias Salgadas de Um Hadassim.

Por Isabella Hadassah Yehudah Yahya Xavier

Prólogo

O sol nascera alto, espalhando sua luz dourada entre os galhos retorcidos da caatinga. O vento quente sussurrava nomes antigos nas folhas secas. Sigo pela estrada de terra montada em meu burrinho, que caminha manso, como se conhecesse cada pedregulho, cada silêncio dessa terra, o sol está a pino, de rachar minha moleira. Meu nome é Hadassim, como aquele que nasce na seca do sertão, trago no peito uma alma que já foi calada, apagada pelas cinzas da inquisição e pelo esquecimento das gerações. Minha história não é só minha. É de um povo inteiro que teve que esconder sua luz, seu passado, suas raízes.

Numa noite silenciosa, quando a lua se ergueu cheia e alta sobre o sertão, algo aconteceu. Uma voz, suave como a brisa, mas firme como o vento quente do meio-dia, chamou meu nome. Estremeci, escutei mesmo ausência de som da minja surdez. Uma voz que vinha do fundo da terra rachada, do silêncio das pedras e da memória ancestral.

Ela dizia: "Hadassim, filha da terra e da promessa, leve tua herança e siga para o Sinai. Lá, onde o deserto encontra a montanha, tu encontrarás o que te foi dado, e o que há de vir."

Naquela noite tive um sonho onde arrepiou meu espinhaço!

Deitada em sua cama, envolta no silêncio que a surdez impunha, ela ouviu. Não com os ouvidos, mas com a alma. Um louvor brotava do peito, atravessando o véu da realidade, ecoando em sua essência. Era uma melodia suave, sagrada, que não precisava de som para ser sentida.

A casa então se abriu. As paredes respiraram, os portões se escancararam como braços abertos. Ela, ainda deitada, permaneceu ali, enquanto gente sua, de seu sangue e coração, entrava em fluxo constante. Cantavam. Choravam. Tocavam o chão com os pés nus, e o ar com suas vozes emocionadas.

Entre eles surgiu uma mulher.

Vestia-se de branco, com adornos reluzentes — brincos longos, colares que tilintavam, anéis que contavam histórias, pulseiras que marcavam o tempo. Um pano ardente cobria-lhe a cabeça. Tinha um olhar severo, mas doce como abraço de avó. Suas mãos eram macias como algodão molhado de bênção. Os olhos escuros brilhavam como a noite quando está cheia de estrelas.

Aproximou-se da jovem e disse, com voz firme e maternal:

— Tu és minha filha, de meu marido e de meus filhos.

Então, com reverência, mandou:

— Engole está palma dourada.

E naquele gesto, entre o sagrado e o familiar, o mundo pareceu parar.

Era um chamado que não podia ser negado. A herança que recebi era mais que objetos e palavras. Era uma memória de meu povo, um fardo invisível que carregava comigo em cada passo. E então, com o coração cheio de uma certeza antiga, tomei minha mochila, pus a herança da família, uma vela, uma oração e um amuleto de proteção. Junto de mim, meu burrinho, que fora de meu pai, um beijo de minha mãe, os únicos amigos leais nessa jornada silenciosa. E, antes de partir, recebi uma bênção de cada, e a última de minha mãe, que me disse apenas: "Vá, filha, e traga de volta o que é teu."

ATO I - O Chamado e a Viagem

A estrada diante de mim era empoeirada, como a memória que se perde no vento. Cada vilarejo que cruzava guardava um pedaço de minha história, e cada pessoa que encontrava me olhava com um olhar familiar, como se soubessem de onde venho e para onde vou. Meu burrinho caminhava manso, como se também ele sentisse o peso da missão. Eu cantava baixinho para ele, palavras antigas que minha avó sussurrava, lembranças que floresciam em minha boca.

Ao passar por um povoadozinho, chamado Matões, ouvi um homem murmurar algo em ladino, um som suave, quase como um sussurro no vento: "Ele não nós desmazalará! Porque Ele é Fiel", ele disse, olhando para o chão. Um eco familiar, uma palavra que minha bisavó sempre usava para desejar sorte, mesmo quando a vida parecia a massacrar. Mazalado... Sorte, Desmazalado... má sorte.. Seria isso o que eu procurava, sorte, ou uma bênção?

Mais a frente, cheguei em Garrotes à casa de uma mulher idosa, essa é minha tia-avó e madinha, ela acendia uma vela, com um gesto tão familiar que fez meu coração bater mais forte. Seus olhos se encontraram com os meus, e ela disse suavemente, "Bendito é Tu, Meu Senhor, por dar no dia de hoje o pão e o vinho".

Em uma língua que não entendia completamente, dizia minha avó: "Acher," e fez como sinal, o seu sal, como quem purificava. Sussurrava enquanto lavava a carne, me fez pensar em tudo o que ainda estava por vir, no que era impuro e no que deveria ser purificado em minha alma. Precisava ser lavada e salgada.

Cantei em silêncio, acompanhando meu caminho, com o pensamento em minhas avós, em minhas bisavós, em os pais de seus pais, que talvez estivessem me guiando:

"Na terra seca brota a flor,

Semente da promessa, da memória, do amor.

Vou rumo ao Sinai, onde a montanha brilha,

Com o fardo de meu povo, com a alma que se humilha."

ATO II - A Herança e os Segredos

A mochila estava pesada, não só pelos objetos que trouxera, mas pelas memórias que estavam entrelaçadas. Cada item parecia ter vida própria. O anel de noivado de minha bisavó, ele que passou pela mão de sua avó, o oratório da tia-avó, recebido pela sua tia, essa por sua vez da avó, o relicário que pertencera a minha bisavó, e a mãe de sua mãe. A mala de seu pai, a qual está comigo nesse viagem, o jarro para lavar as mãos esse da mãe de minha querida madinha bisavó, e dentro de mim, as palavras em ladino, como ecos de uma língua que guardava um segredo há muito esquecido. Senti-me uma ponte entre dois mundos: o sertão que me formou e o Sinai que me chamava.

Em cada aldeia, vi as marcas do que meu povo viveu e escondeu, de Piancó a Codó, de Icó a Caicó. As velas acesas secretamente, o ritual de lavar a carne com sal, o temor das palavras ditas em voz alta. A herança da memória viva em cada gesto, cada olhar. Onde quer que eu fosse, sentia que algo me observava, que a memória se estendia além da visão humana, como se o próprio sertão estivesse me guiando, me preparando.

Num outro dia, na antiga Misericórdia, um homem, com um semblante sério, disse: "Malsinado, de quem é o pecado?" Malsinado... reverberou em minha mente, uma palavra de condenação, como se a memória de traidores estivesse enterrada em nossas raízes, um peso que carregávamos sem saber, como um fardo oculto. Cada palavra dita carregava consigo uma história não contada, um segredo não revelado.

E ainda em outra casa, a velha mulher da porta disse, com um olhar cansado: " Que Zona, meu Senhor, ó fardo pesado, não há descanso." Cada palavra era um reavivamento da chama oculta, a qual os tacanhos tentaram tirar, um fragmento do nosso passado escondido.

Na saída, eu canto, sem pressa.

"Em cada passo, um segredo,

Em cada vento, um fado.

Canto para o vento que me chama,

Minha alma, em silêncio, é lembrada."

ATO III - A Noite e o Canto

Na quarta noite de minha viagem, a noite caiu mais cedo. Olhei para o céu e, com os olhos fixos na imensidão, vi a primeira estrela surgir. Era o momento que minha avó sempre mencionava: "Quando a primeira estrela aparecer, acenda a vela. É o sinal." Então, sem saber, fiz o que ela me ensinara, e acendi minha vela à luz do luar, sentindo que, de alguma maneira, estava cumprindo uma tradição esquecida.

Num campo simples, em silêncio, preparei o pouco que havia trazido. Como se o destino me tivesse guiado sem eu perceber, me vi repetindo gestos antigos. Não sabia o porquê, mas parecia que tudo ao meu redor, o vento, a terra, a noite, a estrela, estava me dizendo que aquilo era importante.

Um amigo viajante, em semelhante missão avistei. Foi então que me lembrei das palavras que minha avó sempre dizia ao avistar um amigo do peito: "Benção no Shabato".

"No deserto, o canto é forte,

É o grito da alma que não se apaga.

Com cada passo, traço meu caminho,

Com a memória do meu povo, sigo sozinha."

ATO IV - A Páscoa e a Última Noite

Na noite da Semana Santa, todos se reuniram nessa caminhada em Misericórdia e Fumo, quando o sertão silenciava sob o peso das estrelas e o tempo parecia parar entre o som das matracas e o cheiro de terra molhada de oração, minha família vivia uma Páscoa que ia além das cruzes e procissões. Era uma celebração que falava baixo, que se contava em gestos e sabores, trazia em si ecos de um Êxodo mais antigo, mais escondido.

Lavou-se às mãos, o pão e trigo foram guardados longe, no início da semana. A carne do cordeiro e do peixe era lavada com sal e limão, como purificação.

Na mesa, mesmo quando não havia fartura, havia ordem. Comíamos ervas amargas, couve, às vezes almeirão, jiló nos tempos difíceis, que faziam franzir o rosto. Havia também vinho, servido com solenidade, ainda que fosse vinho doce de garrafão, Sangue de Boi era o seu nome, e ovos cozidos em cada prato.

Na véspera da ressurreição, minha avó deixava a casa escura. Apagava todas as luzes e acendia uma vela — não no oratório, mas no fogão, ou às vezes no canto da cozinha. E ficava ali, sentada, em silêncio, esperando as primeiras estrelas. Eu a via tudo aquilo me emocionado, e acham que era pelo "Salve, Rainha", naquele gesto simples havia um shabat escondido, uma fé que sobreviveu camuflada.

Essas tradições não vinham com explicações. Não se dizia que eram judias, nem se citava Moisés ou o Sinai. Mas estavam ali. Na postura, na linguagem, na ordem dos alimentos, na reverência silenciosa. Com o tempo, percebi que celebrávamos uma espécie de Seder sertanejo, um Pessach disfarçado de Semana Santa, um Êxodo celebrado por descendentes de exilados que já nem sabiam seu nome.

Me despedi emocionada, subi em meu burrinho, sabendo que ainda tinha chão e cantei:

Carrego a rejeição,

A falta de prova,

No vazio do São Francisco,

Recebo a lição,

Não me falta lembrança,

Brota inteira esperança.

Da mistura eu vim,

Mas não deixo de ser raiz,

Mesmo exilada de Sião,

Não deixei de ser aprendiz,

Porque Sinai é para mim.

Emergi do pó do sertão,

Sou filha de Abraão,

Meus pés é da terra rachada,

Sião mora no meu coração

Não serei rechaçada

Confio em D'us e em sua mão.

Epílogo

Meu burrinho e eu, depois da jornada, descansamos sob as estrelas. As pedras do Sinai me olhavam como antigas testemunhas. O que buscava, encontrei não apenas na terra, mas no que carrego em mim, veio da alma.

Um grupo amigo me recebeu, eles diziam ser da Aliança, quiseram fazer uma Brit código. O chamado havia sido cumprido. E eu, com a herança de meu povo e o beijo de minha mãe guardado no coração, sabia que o retorno seria diferente. Eu voltaria, não mais com a alma silenciosa, mas com a luz oculta que agora resplandece.

A estrada segue, como a memória que nunca morre. Mesmo quando se cala, canta. Mesmo quando se esconde, resplandece.

E eu sou parte desse canto. Eu sou luz oculta. Eu sou retorno.

Isabella Hadassah Yehudah Xavier
Enviado por Isabella Hadassah Yehudah Xavier em 06/05/2025
Código do texto: T8325981
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