Uma historinha qualquer
Uma historinha qualquer bem que poderia começar assim: naquele exato momento, percebi que era uma paixão que nos aguardava — daquelas lunáticas, extasiantes, que se transfiguram em doce amor.
Foi quando descíamos o escadão da Treze de Maio, no Bixiga. Éramos convalescentes da febre avassaladora da Covid-19 — em seu rescaldo, deixava máculas persistentes, perdas de faculdades sensoriais básicas, especialmente no que tange ao paladar e olfato.
Ela descia cantando uma música antiga do Sílvio Caldas, Chão de Estrelas, fazendo graça, seduzindo não apenas a mim com sua voz, sua leveza, sua beleza. Rodopiando entre uma canção antiga e outra, dizia estar convencida de sentir o perfume amadeirado e adocicado das almas que, há décadas, passaram por ali — naquela escadaria antiga, viva, parte pulsante da história de São Paulo.
Sua impressão, no entanto, era uma mutação da pérfida gripe, que lhe confundia os aromas. Na prática, ela sentia perfume de flores onde reinava, soberano, o cheiro ocre e nauseabundo de urina.
Pensando bem, pude identificar aquele momento como a ignição essencial: a chama da pedra lascada, acesa por homens ancestrais. O fogo consumidor da paixão se acendeu ali — e suas chamas, ao que tudo indica, não têm hora certa para se apagarem.