Eu entendi os meus monstros, fiz uma sala para estarmos em conversa diária. Sento-me, relaxo e vomitamos as nossas agonias existenciais. Eles são feras cruéis comigo e ninguém mais. E ninguém mais. 

Eu chego e, assim que me jogo na cadeira, me percebo um farrapo, um amontoado de enganos e falsas fortalezas (e promessas).  Um amontoado de medos. Mesmo assim, ligo Nelson Can - Downtown , fecho os olhos e canto a música inteira num sussurro pesado mas gostoso enquanto balanço ao ritmo com a minha perna esquerda. Numa calma fingida de quem está diante do fim dos tempos mas mesmo assim tenta manter o controle a todo custo. Essa música, essa banda, aprecio muito. Me cai como um mantra.

Mentalmente mantenho um altar e ao meu redor todas as minhas cicatrizes emolduradas. Alguns amigos me dizem que a minha força é admirável. Quanta bobagem! A força é o resultado de qualquer inferno vivido, o resquício de quem acabou de sair de uma guerra. Guerra não deixa sobreviventes. Ninguém sai inteiro de uma guerra. Ninguém.

Antes de dormir eu mentalizo tantos bons sonhos que gostaria de ter. Tenho tido muitos pesadelos. 

Eu caminho e cumprimento sorrindo. Mas ninguém sabe da sala que carrego dentro da memória, no cárcere dos meus pensamentos. São tantos campos de batalhas e salas caindo aos pedaços. E mesmo assim eu sonho tantas delicadezas e as coisas mais diminutas me emocionam. Eu choro pelo que ninguém chora. Eu reparo em cenas que ninguém mais se importa. Eu sofro pelos invisíveis, pelas aves de asas quebradas, pelos ninhos arrastados pelos temporais e as flores pisoteadas pelos passos em marchas sem progresso. Eu sonho com tudo que o mundo não se importa. Eu tenho a fé cansada, a respiração de quem sucumbe ao gás venenoso. Mas eu ainda adoro a vida! E quando chego, minhas cicatrizes gargalham amontoadas diante de mim, num escárnio avassalador. Céticas e ácidas. Zombam. Sou uma estranha no ninho. Tem dias que não dou a elas qualquer importância. Até colaboro na desafeição. Um amigo me ensinou a domar os meus temores. Meu Deus, como isso é difícil! Ele me disse esses dias: "Deus jogou ao inferno os seus inimigos. E você tem que amar os seus?". É verdade! Meus inimigos internos eu jogo ao mais profundo inferno de mim.  Chega de amar o que me retalha. Agora, quando muito navalhados, emolduro-os e penduro-os na parede, e só.

Quem mais?

Uma Dose de Conto
Enviado por Uma Dose de Conto em 11/05/2025
Reeditado em 11/05/2025
Código do texto: T8330436
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