O Diabo que Veste o Meu Rosto

Eu não queria.

Não queria ter cuspido você pela boca como se você fosse veneno.

Não queria ter ferido com palavras que sangram por dentro.

Mas feri.

E foi o diabo.

Sim, foi ele.

Aquele que aprendi a temer antes mesmo de saber o que era amor.

Aquele que usava a voz dela.

Aquele que morava nos olhares dela, nos silêncios dela, nos elogios com espinhos.

Ela.

Ela, que torcia a realidade até caber na palma da própria mão.

Ela, que chorava antes de gritar, e sorria depois de humilhar.

Ela, que sempre achava um motivo — alguém, algo, qualquer coisa — para se livrar da culpa.

E eu… eu apenas ouvia.

O diabo cresceu ali, onde ninguém via.

Entre um “foi só uma brincadeira” e um “você que entendeu errado”.

Ele cresceu nos sorrisos falsos da sala de estar.

Nos jantares que doíam mais do que alimentavam.

Nos quartos onde o silêncio era uma sentença.

Eu cresci com ele.

Com medo dele.

Com raiva dele.

Com vergonha de não saber onde ele começava… e onde eu terminava.

E aí você apareceu.

Com mãos boas demais, com um coração que ainda não sabia se proteger.

E o diabo acordou.

Ele se serviu da minha insegurança como banquete.

Usou minha língua como chicote.

Transformou minha mágoa em arma.

E mirou em você.

Você, que não tinha nada a ver com isso.

Você, que só queria me amar.

Mas foi ele quem respondeu.

Ele quem gritou.

Ele quem sabotou.

Ele quem transformou o amor em campo minado.

E você achou que era eu.

Mas não era.

Era ele.

O mesmo que um dia falou por ela.

O mesmo que me ensinou que o afeto pode ser faca, que o carinho pode ser culpa, que o amor pode doer mais que o ódio.

E eu?

Eu só repeti a lição.

Vesti o mesmo tom.

Decorei as mesmas falas.

Perfumei o diabo com medo, com desespero, com vergonha de ser como ela.

Mas era tarde.

Ele não tem chifres.

Ele tem o meu rosto.

E antes disso…

Tinha o dela.

Ele é tudo aquilo que ela nunca assumiu.

É o que ficou quando ela se fez de santa.

É o que ela jogou pra dentro de mim, cada vez que disse: “a culpa é sua”.

E agora, o que me resta é dizer:

Eu não queria.

Mas feri.

E foi o diabo.

E eu sou ele.

E ele…

Era ela.