Cérebro Eletrônico
O lateral esquerdo da Seleção Brasileira, na Copa de 1974 se chamava Marinho Chagas. Acho que foi pelo burburinho em torno da proposta do patrocinador, de vestir a Seleção com uma camisa vermelha, que a minha memória resgatou Marinho, os cabelos loiros, correndo por campos alemães, em 1974.
Eu era criança. E pra mim aquelas figuras correndo no campo, dada a distância no enquadramento das imagens, eram crianças também. Lembro-me da sombra do anel de arquibancadas no gramado, e do encantamento que a cena produziu em mim, por muito tempo, depois daquela tarde de vinte e seis de junho. Aqui no sudeste também, por causa do inverno, a temperatura era bastante agradável, apesar do dia ensolarado.Estávamos na casa de uma prima do meu pai, agora me foge o nome dela, em São Miguel Paulista, na zona Leste. Por algum motivo minha mãe não pôde ir. E eu não sei qual foi esse motivo. Meu pai, meus dois irmãos e eu, num Fusca 1967, ao que tudo indica, fomos almoçar lá na casa dessa prima dele, em companhia de vizinhos e amigos da família dela, enquanto rolava o jogo Brasil x Alemanha Oriental (para nós, no período da manhã).
O Fusca 1967 era um caso à parte. Um dia, enquanto o meu pai o lavava, espetei meu dedo num arame embaixo do banco traseiro, que estava com o assento reclinado. O sangue correu, misturado às lágrimas. Mas o incidente não foi suficiente para diminuir o meu amor pelo carro. O volante, branco, com a buzina num semi-aro metálico, hoje pode ser encontrado na internet sob a denominação "volante cálice marfim". O velocímetro, o cheiro do couro... e a cor da lataria... Só fui convencido de que era "azul calcinha" por que, muito mais tarde, fazendo referência à mesma cor, minha esposa vaticinou: é um azul bem clarinho. Até então, eu via algo muito perto de cinza claro, e ainda sou capaz de o sustentar firmemente; mas, infelizmente, nessa história o daltônico sou eu...
O ponto onde quero chegar - e que motivou essa reflexão - é que a minha memória falha em torno de alguns detalhes, para mim, importantes. E a minha curiosidade não pode ser atendida por qualquer consulta que eu venha fazer ao Google ou à IA. Os meios digitais me ajudaram com a partida de futebol. Sua data exata, por exemplo. Há fragmentos de vídeos dessa partida no YouTube e fotos de muitos fuscas parecidos com aquele do meu pai, na internet. E do seu volante, dos seus pneus e estofamento. Mas, para além disso, um outro fato marcou essa data para mim: nesse mesmo dia, numa conversa informal, o meu velho acertou a venda do veículo para um completo desconhecido. O rapaz era amigo da família da prima dele. Estava lá, naquele dia, muito provavelmente por causa da partida de futebol. Encantou-se pelo carro, numa época em que uma folha de cheque era uma garantia razoável; um pouco mais confiável do que a palavra acordada. Mesmo assim, negociaram. E voltamos "à pé" para casa.
Nunca coincidiu de meu falecido pai e eu voltarmos ao assunto. E a mosquinha do "Como isso aconteceu?" zumbe em meus ouvidos até hoje. Alguém vender um carro a um quase desconhecido, com uma garantia tão frágil, e voltar de condução para casa, do outro lado da cidade, precisando de quase três horas para retornar da jornada com três crianças (a mais velha, à época, contava sete anos) é , no mínimo, curioso. Minha mãe não foi conosco. Por quê? Estava indisposta? Tinha ciúmes da prima? Não confiava no motorista inexperiente que o meu pai era na época? E o nome da prima dele? O nome... O nome... Noêmia. Noêmia! Lembro-me agora, a "prima Noêmia". Mas, é só. E nenhuma informação complementar pôde ou poderá ser obtida por meios eletrônicos. Apenas laços familiares, há muito desfeitos, poderiam elucidar algumas questões e serenar minha alma. Só que o tempo os enterrou. E hoje, compreendo a sensibilidade de Gil quando concluiu que "cérebro eletrônico nenhum me dá conforto com seus botões e seus olhos de vidro". Nem GPS, nem IA, nem Google. Nenhuma ferramenta de busca pode nos socorrer em nossas necessidades mais humanas.