DAS HISTÓRIAS DAS RUAS (as dos que foram furtados)
Endereçado às mãos que tudo nos levam...
Já faz algum tempo que os observo atentamente.
Trata-se de uma família de recicladores, os que pontuam o duro trabalho feito nas ruas das cidades de todo o nosso país.
Então, recentemente, ao caminhar pela minha rua, eu me aproximei para uma das tantas conversinhas que faríamos depois...
Impressionante o que vi e ouvi ali.
Seria impossível não descrever as cenas e as narrativas, posto que são "fatos que gritam" ao nosso pensamento.
Numa recente oportunidade, em meio aos cantantes Bem-te -vis do Outono, havia inúmeros sacos de produtos a guardar ali no asfalto, todos caprichosamente já vedados e tantos outros à espera da logística dura dos catadores, a que tira e gerencia os descartes de dentro da nossas casas para o devido reaproveitamento.
A causa é ...no mínimo, de uma nobreza intocável. Humanística e ambiental.
Tudo em nome do sustento das vidas e da sustentabilidade do Planeta.
Na primeira vez que ali parei pude conhecê-los um pouquinho: Um casal na faixa dos sessenta e pouco anos, de braços fortes, de músculos bem delineados, mãos possivelmente calejadas que usavam luvas de borracha (EPIs), portadores de energia, fôlego e vontade sobrenaturais, assim como me soaram os seus milagrosos sorrisos, tão perenes, brilhantemente desenhados nas faces queimadas de sol.
Dentre o todo, o que mais me inspirou a presente escrita foi olhar para para dentro da sofrida "pick -up" , a que aguardava o volumoso carregamento da valiosa carga, como se fossem sacos de ouro garimpado.
Sentada no banco da frente, no do passageiro, estava uma senhorinha de quase 90 anos (eu disse noventa!), a rezar freneticamente o rosário do dia. Eu, não muito educadamente, a interrompi.
-Bom dia, senhora, como vai! O que faz aqui?
-Bom dia, fia! tô muito bem, aqui "trabaiando" com meu fio e nora, dando força, mas antes rezo a Deus nosso senhor, todo dia e toda hora! Qué que eu reze pra ôce também?
Engoli a seco e pensei : "quem não precisaria de muita oração?'
-Claro, respondi. Fico agradecida. A senhora não se cansa de vir até aqui, nesse solzão das manhãs?
-Não fia, essa é minha alegria, eu trabaio até hoje. Eu rezo! Eles querem que eu fique quieta lá em casa (mas sô?)é o trabaio que me faz tá viva! Eu rezo! E tô cheia de saúde! Tenho que ficá perto do meu fio e ajudá meus doze bisnetos! Só tenho uns probreminha do tempo que nem ligo...eu só rezo!
Eu não poderia deixar de concordar com aquela sabedoria toda...
E os bem-te-vis faziam a sonoplastia ao nosso texto...
O casal, oito filhos, 4 netos, super comunicativo, era -até há pouco antes da pandemia- dono de um mercadinho de bairro, -"E a gente fazia pão quentinho dona, o melhor da região!" disse-me o senhor. "mas...tudo mudou."
Numa dessas coincidências da vida, descobrimos que um de seus filhos havia sido um dos porteiros do meu condomínio.
Um menino, cuja inteligência e esforço saltavam aos olhos.
Certo dia conversamos, quando eu lhe disse: " você vai crescer muito, esse trabalho é só uma ponte!".
E foi. Dois meses depois ele estaria empregado como professor de Teologia, formação que acabara de concluir na universidade.
Ontem, finalmente minha crônica pulsante estava selada. Seria impossível não escrever...AO MUNDO.
Enquanto eu descia a rua, a senhora do rosário em mãos subia a pirambeira pela calçada, sempre rezando, agora apoiada numa tênue bengala, enquanto o casal providenciava a sagrada logística do dia.
Soube que carregam 1,2 toneladas de produtos por semana.
-Olá, olha só que beleza, hoje rezando e caminhando, que fôlego, hein!- eu lhe exclamei.
-Bom dia, fia! Mas ocê num sabia que andá e rezá faz bem pra saúde? Quer que eu reze procê também , lá pro nosso Senhor?
Sorrindo, eu lhe assenti com a cabeça, impressionada com o que via ali...
Assim, seguimos depois de nos cruzarmos...
-Tchau, feliz Domingo das "tantas mães " para a senhora!- eu lhe desejei. "reze sempre por todas nós!"-conclui.
Eu não poderia terminar minha narrativa sem fazer uma analogia com as últimas notícias que atordoam o nosso país.
Sim, foram esses personagens REAIS da minha crônica, os idosos que literalmente "se viram nos suores do dia a dia" para tentar seguir, os que foram lesados com descontos indevidos nas suas aposentadorias institucionais.
O verbo "furtar", no meu título, é um respeitoso eufemismo com quem não merece respeito algum.
Ato hediondo o de lesar as vulneráveis dores da nossa parca sobrevivência social no final das vidas.
O que menos importa é saber quem foi...(nunca saberemos, não saber por aqui é ESTRUTURAL) posto que é quase impossível a difícil logística CIDADÃ, a de separar o robusto e entremeado joio em meio ao tão, e cada vez mais, escasso trigal.
O que importa é nos perguntarmos : "como, por quê e...até quando?".
A senhorinha da minha crônica me ensinou uma grande lição: sim, é preciso rezar muito, e cada vez mais...
Assim pensando ainda pude ouvir quando os "BEM-TE-VIS" , mais uma vez, nos soaram roucos, com se fossem os únicos a ver e a saber de tudo...bem como a chorar seu triste e crônico lamento por todos nós.