Negra gente - a liberdade ainda é sonho sendo construído
A 13 de maio de 1888 uma Lei assinada pela princesa Isabel colocou fim à escravidão do negro no Brasil. Desde então a história oficial celebra esse ato, como um momento libertador. Perante a Lei doravante qualquer forma de escravidão afrontaria a monarquia brasileira. Apesar desta mesma história registrar o movimento abolicionista, pouco ou quase nada trás sobre suas proposições.
A proclamação da república em 1889 e a promulgação de sua primeira constituição mantiveram o que ficou estabelecido na Lei Aurea. Nada foi feito além do que previa a Lei (a extinção da escravidão), isso é, na prática desconsiderou-se as lutas abolicionistas e suas agendas que visavam a plena integração do negro à sociedade brasileira. Houve, inclusive abolicionistas que defendiam a reforma agrária como forma de garantir a igualdade social.
Mas o que significa de fato a liberdade? Melhor ainda, o que significou para os(as) negros(as) a liberdade assegurada pela Lei Aurea?
Na filosofia, tomada aqui de modo mais geral, o conceito liberdade carrega inúmeros sentidos, dos quais destaco: a) capacidade de agir de modo independe e autônomo; b) a capacidade de escolha, decisão e ação, ainda que isso não possa ser pensado de modo absoluto.
No primeiro sentido – a independência e a autonomia - aconteceu no dia seguinte à proclamação da Lei, mas de forma variável, tendo em vista a diversidade de situações vividas pelos negros escravos no Brasil. Nas cidades, principalmente nas capitais provinciais existiam negros e negras que faziam o trabalho doméstico (dentro das casas e próximo a seus senhores), mas também existiam os chamados negros de ganho, isto é, aqueles (as) escravos (as) que trabalhavam para seus senhores nas ruas, escritórios ou mesmo como quitandeiras, lavadeiras, carregadores etc.
Nesta realidade urbana, vários escravos já estavam habituados a lidar com o dinheiro e a circular pela cidade. Contudo, suas atividades supunham continuar, pós libertação, a desempenhar as mesmas funções (agora sem o intermediário – o senhor(a) ). Para tanto, era imprescindível seguir morando nas proximidades dos locais em que desempenhavam suas funções. Entretanto, não existiam imóveis disponíveis, e os poucos que existiam estavam fora de seu alcance. No Rio Janeiro isso será – resolvido – com a ocupação irregular dos morros e com a consequente favelização.
Ainda no contexto urbano cabe destacar que as funções desempenhadas pelos ex-escravos além de mal remuneradas, sofriam a concorrência de imigrantes europeus. Mesmo esses imigrantes estando na linha da pobreza, ainda assim a curto e médio prazo se integraram à sociedade brasileira em condições bem mais favoráveis que os negros.
Nas fazendas, minas ou outras atividades vinculadas ao extrativismo, demorou para que a notícia da libertação dos escravos chegasse e, sua implementação esteve quase sempre condicionada pela vontade dos senhores. Não havia um mercado de trabalho no qual o antigo escravo, agora liberto, podia inserir-se, ainda que por um ínfimo salário. Continuar nas fazendas e seguir dependendo dos senhores está na base do clientelismo que marcou, os primeiros 50 anos de república.
Considerando o segundo sentido do termo liberdade – a capacidade de escolha - é preciso lembrar que tanto nas cidades como no interior do país nada foi feito para acabar com a desigualdade social e tudo o que ela significava em termos econômicos, sociais e culturais. Nenhuma forma de compensação foi implementada. O (a) negro (a) livre estava entregue à sua própria sorte.
Longe de qualquer política pública – seja da decadente monarquia brasileira, seja da nascente república – ser negro (a) significava estar numa condição social marginal e, isso seguirá sendo verdade por quase todo o século XX. Somente a partir da Constituição de 1988 é que o racismo passou a ser considerado crime inafiançável e imprescritível.
Até mesmo com relação à religião a situação dos negros (as) também seguiu marginalizada. Até a década de 30 era comum a invasão de lugares de culto afro-brasileiros, com prisões e quebra-quebra. Muitas homilias nas igrejas católicas tematizavam a promiscuidade e a falta de valores morais inerentes à negritude, além é claro que considerar todas as suas expressões sagradas como satanistas. Detalhe importante a ser considerado aqui, é que também no meio protestante-evangélico essa percepção preconceituosa também ocorreu, e segue vigente em várias igrejas.
Por tudo isso, e muito mais coisas, é difícil levar a sério o 13 de maio e as comemorações por essa efemeridade. Nesta data fica evidenciado que os brancos cederam algo – a liberdade -, por um ato político, uma estratégia de poder (que aliás falhou). Esvazia-se assim toda a luta abolicionista e o que ela carregava de identitário em prol de uma fantasia de democracia racial.
Os movimentos negros optaram por caminhar em outra direção em sua luta por direitos. Isso fica explícito ao estabelecerem o dia 20 de novembro como dia da consciência negra, e assim, celebrar a morte de Zumbi dos Palmares (assassinado em 1695), como memória e resistência negra a toda forma de opressão. É essa memória perigosa que Zé Vicente – um cantor e poeta das comunidades eclesiais de base nos lembra ao falar dos tambores de Zumbi: Um clamor da terra. Um clamor do céu. Um clamor da gente. Um clamor da memória comovente. Despertando a história do Brasil.