NA CASA DE "TIA DETE"

Na década de 90 fui lecionar no turno noturno numa Escola Estadual. Essa unidade escolar está situada no Alto da Terezinha, no subúrbio de Salvador. Local considerado pela Secretaria da Educação do Estado de difícil acesso. Pela escassez de transporte e devido à dificuldade que tinham os professores que residiam em bairros distante de chegar até a escola, o governo do estado, reconhecendo essa dificuldade de locomoção dos docentes, pagava com justa razão uma gratificação de 30%, tomando como referência sempre, o salário base.

O muro que protegia a escola era de forma circular, com mais de três metros e meio de altura. A pista contorna o muro, pois o estabelecimento fora construído no ápice do terreno do morro. Era no Rio Sena o ponto de ônibus que usávamos para saltar e pegar o transporte. Naquela época, tínhamos que andar desse ponto para chegar até a escola quase uns 500m. Os assaltos a ônibus no período da noite eram freqüentes. Muitos dos professores, no trajeto da escola, foram assaltados. Não se podia usar um relógio ou um telefone celular, pois corríamos o risco de sermos assaltados. Muitos professores, quando a Secretaria da Educação designava para lecionar nessa escola e conheciam o local, logo desistiam.

A administração da escola era de péssima qualidade, apesar de ser um prédio com 12 salas de aulas e com funcionários suficientes para cuidar bem das instalações. O prédio está situado no centro do muro circular. No espaço vago que há entre o prédio e o muro, havia bastante mato misturado com papéis, e cadeiras quebradas escondidas na vegetação.

No interior da escola havia torneiras quebradas nos bebedouros dos alunos, dificilmente havia água para se beber. Os sanitários dos alunos eram de um odor insuportável, pois sempre faltava água e não havia papel para higiene. Nos sanitários dos professores não havia água e sabão para se lavar as mãos.

As lousas das salas de aula feitas de cimento na parede, pintadas de verde, eram horríveis para se escrever com giz.O giz que recebíamos para trabalhar era úmido e quebradiço, de péssima qualidade. Em algumas salas de aula não havia mesa para o professor. Nem papel era nos fornecido para fazermos as atividades pedagógicas com os alunos. Os professores, para ter água para beber, faziam uma “vaquinha” comprando um garrafão de água mineral e copos descartáveis.

A vice-diretora do noturno (*), indicada para o cargo por um dos nossos “competentes” políticos, ocupava por vida a secretaria da Escola. Dessa secretaria eram emanados todos os seus atos e desmandos administrativos. Durante o período que passei nessa escola nunca houve uma reunião com a vice-diretora para se falar ao menos para que veio e o que se pretendia fazer... A insensatez, a falta de ética, a incompetência e o espírito de mesquinhez era tanto que a pobre “professorinha”, no início da sua gestão, mandara confeccionar um “Carimbo de Atrasado”, porém não funcionou, devido às críticas de alguns professores, passando a deixar essa atividade a cargo dos alunos. Aos alunos ela ordenava para anotarem os minutos da chegada de atraso dos professores à sala de aula, pois ela, no fim do mês, somaria os minutos e transformaria em faltas diárias e mandaria descontar no salário do professor “faltoso”. Era uma discussão sem precedente de professores com a vice-diretora por causa dessas faltas.

Quando um professor ficasse doente, tinha que comprovar a falta mediante atestado médico dentro de 24 horas, caso contrário seria descontado a falta.

No turno noturno funcionava o Curso de Aceleração. Esse curso, feito em dois anos letivos; era equivalente ao Curso de 1o grau completo. No primeiro ano letivo fazia-se Aceleração I – abrangendo conteúdo programático de 5a e 6a série de algumas disciplinas.

No segundo ano letivo cursava-se Aceleração II – correspondendo aos assuntos de 7a e 8a série com exceção de algumas matérias. Em suma nesse curso só eram estudadas as disciplinas básicas, como Português, Matemática, História, Geografia e Ciências – um curso de 1o grau com conteúdo e aprendizagem resumida, de baixo custo para o poder público, simplesmente para cumprir uma obrigatoriedade constitucional. No início do ano letivo, as classes do Curso de Aceleração eram superlotadas. Havia uma média por turma de 56 a 58 alunos. Com o passar dos meses os alunos iam evadindo-se até chegar a uma média por turma de 8 a l5 alunos no final do ano letivo. A evasão de alunos era tão acentuada nesse curso que se podia atribuir a vários fatores: muitos se matriculavam para adquirir o vale transporte estudantil, e assim que recebiam, abandonavam o curso; outros tinham a intenção de estudar, porém encontravam dificuldade em acompanhar o curso, pois liam e escreviam com dificuldades, e com o passar dos meses não encontravam motivação na aprendizagem, e abandonavam o curso; alguns, visando apenas a merenda escolar, esporadicamente freqüentavam as aulas, conseqüentemente contribuíam para a baixa freqüência.

A linha de pobreza de uma pequena percentagem de estudantes era tão grande que nem casa tinha para morar. Moravam na rua e sobreviviam de biscates. Outros moravam de favor em fundos de armazéns, oficinas de automóveis e borracharias. Como também havia os que moravam em barracos de terrenos invadidos ou em encostas de morros, com um único cômodo construído de maderite. Esse cômodo servia de cozinha, quarto de dormir, sala de jantar e sanitário, com uma única lâmpada.

A maioria desses estudantes exercia as mais diversas atividades no mundo do subemprego, isto é, sem vínculo empregatício: carregadores de compras, serventes de pedreiros, vendedores de picolés e cafezinhos nas praias, vendedores ambulantes de frutas e verduras, lavadores de carros a domicílio, catadores de mariscos, jornaleiros, guardadores de carros, pescadores de redes, aprendizes de mecânica automobilística,fazedores de “rolos” com bugigangas, animais e pássaros na “Feira do Pau” .

Estávamos no meado do mês de novembro. Encontrava-me na sala de aula da turma B, fazendo a entrega dos últimos trabalhos escritos do ano letivo aos alunos que haviam passado de ano. Quando eu estava entregando o último trabalho, faltando alguns minutos para terminar a última aula do turno, adentra na sala de aula o aluno Manuel e disse-me:

- Professor, eu estou precisando conversar com o senhor! Quando o

o senhor atender todo mundo a gente conversa! Está certo?

- É Manuel, precisamos conversar mesmo...

Quando todos os alunos se retiraram da sala e fiquei sozinho com Manuel, disse-lhe:

- Manuel, o que houve com você que passou quase dois

meses sem comparecer ao colégio? Você estava doente?

- Não professor. Eu não estava doente. Para ser sincero ao senhor eu estava na Ilha tomando água de coco.

- Mas Manoel!... Que negócio é esse, rapaz! Você some da escola e tem a coragem de me dizer que estava tomando água de coco na Ilha! E finalmente o que você veio fazer no colégio, no final de ano?

- Professor eu vim lhe pedir uma oportunidade para o

senhor passar um trabalho para mim. Não me leve por mal, professor. Eu sempre fui um aluno com boas notas em todas as disciplinas e o senhor sabe disso. Estou precisando da conclusão do 1o grau, pois um conhecido me prometeu arranjar um trampo (*) para mim e ele me disse que eu preciso ter o primeiro grau. E outra, que eu quero deixar de viver de rolo na “Feira do Pau”. E eu sei que o senhor vai me dar essa oportunidade.

- É, “seu” Manoel!... Não me resta a menor dúvida que o

senhor é um rapaz inteligente, aprende as coisas com facilidade, tirava boas notas e agora está me pedindo uma oportunidade. E, além do mais, está demonstrando vontade para estudar. Bem Manoel, eu vou lhe dar esta oportunidade.

- E o que devo fazer, professor, para ter essa oportunidade?

- Você vai me fazer um trabalho escrito relacionando o tipo de clima brasileiro com a vegetação e as atividades agrícolas da região geográfica, e me entregar amanhã à noite. Anote direitinho. Ih! Ih! Manoel, que caneta chique você tem!

- Esta caneta eu fiz rolo na “Feira do Pau” por um canário belga.

- E com os outros professores, Manoel, você já resolveu o seu problema?

- Sim professor. Só está faltando o senhor.

- Mas Manoel, onde você estava mesmo durante todo esse tempo?

- Professor eu não vou lhe mentir já que o senhor é uma pessoa legal para mim, eu estava na “Casa de Tia Dete”.

- Ah, Manoel! Você é uma pessoa feliz em ter uma tia tão bondosa como essa! Ai quem me dera ter uma tia dessa! Vou gozar férias e não tenho para onde ir! Você retornou ao colégio bem cevado, humorado, forte, cheio de saúde, bastante despreocupado. Benza Deus! E quando você vai voltar a casa de sua tia?

O aluno franziu a testa, demonstrando que não gostou das minhas observações ao seu aspecto físico, com a voz irritada e olhar repreendedor me disse:

- Olhe o senhor errado, com suas brincadeiras de péssimo gosto. Não gostei da sua gozação com a minha pessoa. Tá bem, professor!...

- Seu Manoel eu estou errado por quê? Eu não lhe disse nada demais!... Só porque eu lhe disse que gostaria de ter uma tia igual a sua, meu rapaz! Até o momento eu não lhe disse nada para desmerecer você!...

- Professor eu estava na detenção! Na Casa de Detenção!

Agora o senhor me entendeu!

- Desculpe-me, caso eu tenha lhe ofendido. Não tive nenhuma intenção de lhe ofender. Não se esqueça de trazer o seu trabalho amanhã à noite. Desejo-lhe uma boa noite!...

Na noite seguinte, o Manoel estava vestindo uma camisa de estamparia florida me esperando de pé, encostado ao lado do portão principal da entrada do colégio.

- Boa noite, professor!

- Boa noite, Manoel!

- Professor, eu estava esperando o senhor para entregar

o meu trabalho porque eu não vou entrar no colégio.

- Vamos entrar, rapaz! Você não paga nada para entrar.

O colégio é seu. Ele foi feito para alunos. Por que você não quer entrar?

- Ah Professor! Eu estou com uns amigos me esperando lá na esquina e disse a eles que não ia demorar muito...

- Manoel, eu não vou receber seu trabalho fora do colégio, aqui na rua! Isso não é ético! É melhor você entrar e conversarmos lá dentro da sala de aula. É o mais sensato!

- Eu vou entrar porque infelizmente estou precisando. Se não fosse isso, eu não entraria.

O aluno adentrou no colégio e foi me aguardar dentro da sala de aula.

- Professor, receba logo o meu trabalho! O senhor vai corrigir agora para me dar logo o resultado?

- Manoel, não dá para corrigir e nem tampouco lhe dar o resultado agora. Amanhã você pega o resultado e seu trabalho corrigido.

- E prá que o senhor mandou eu entrar no colégio?

- Eu pedi para você entrar por que o colégio é o lugar adequado para o professor receber as atividades dos alunos, como também orientar na aprendizagem, e não na rua.

- Ah, professor! Eu já vou... Até amanhã!

- Até amanhã e uma boa noite, Manuel!...

Manuel era um rapaz com seus 22 anos de idade. Tinha atitudes e mentalidade de adolescente. Gostava de andar em grupos de rapazes. Às vezes, mostrava-se arrogante. Fumava cigarros e fazia uso de bebias alcoólicas. Havia comentários de alguns alunos que ele fumava maconha. Comentava-se que ele fora preso por diversas vezes, fazendo rolo com produtos de furto, na “Feira do Pau”. Os

professores procuravam evitar qualquer envolvimento com Manuel.

Na noite seguinte entreguei na classe de Manuel alguns

trabalhos, testes e provas ao líder de classe, como também o trabalho de Manuel.

No momento em que eu saía da secretaria para deixar o colégio, me aparece Manuel, mostrando o seu trabalho e dizendo:

- Professor, veja a sujeira que o senhor fez com o meu trabalho. Eu pensei uma coisa e o senhor fez outra. O senhor é gente ruim.

- Manuel, primeiramente, boa noite! Tenha calma e paciência comigo. Vamos para a sala de aula que eu vou lhe mostrar que você teve um final feliz. Não é nada disso que você está pensando.

- Não é como, professor?

- Na sala de aula eu lhe explico. Você vai entender, está

certo?... Vamos à sala de aula?...

- Eu vou para a sala de aula e vou ver o que você vai me dizer. Eu não quero ouvir cheiro mole...

- Paciência, rapaz! Tenha fé em Deus! Veja com sua consciência, Deus no seu coração!

- Manuel, me dê o seu trabalho! O seu trabalho não tem nada a ver como eu lhe pedi para que você pesquisasse. Você fez coisa com coisa sem sentido!... Eu dei meio ponto no trabalho porque o seu trabalho só vale meio ponto. Eu sou um profissional que me respeito. Qualquer profissional que observar o seu trabalho só vai dar meio ponto. No entanto, nós professores somos mágicos. Observe bem a magia que eu fiz entre o seu trabalho e o “Diário de Classe”. O zero que está na frente do meio ponto no seu trabalho passou para trás no “Diário de Classe” e o cinco que está atrás no seu trabalho passou para frente no “Diário de Classe”. Logo, você tem meio ponto no seu trabalho e cinco é o seu resultado final. Entendeu agora Manuel! Eu lhe disse que você teria um final feliz!

- De fato professor, eu pensei mal do Senhor! Eu não acreditei no senhor! Eu lhe agradeço e peço desculpas...

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Obs. (* ) Era comum, nesse período, os políticos baiano, indicar diretores e vice-diretores para ocupar cargos nos colégios em troca de votos. Os diretores e os vices eram na verdade verdadeiros cabos eleitorais. Viviam atrelados aos compromissos desses políticos. Daí a falta de compromisso com a causa educacional.

(* )trampo é gira e significa uma ocupação ou qualquer trabalho.

(* ) Feira do Pau – É uma feira de trocas, vendas e compras de animais, pássaros, quinquilharias e utensílios em geral novos e usados. Essa feira está situada nas proximidades do Viaduto dos Motoristas, na Baixa do Fiscal, na via que dá acesso ao Subúrbio Ferroviário. É uma feira muito movimentada e bastante conhecida na Capital baiana. Ela é muito freqüentada e preferida de marreteiros e malandros.

EVERALDO CERQUEIRA
Enviado por EVERALDO CERQUEIRA em 24/05/2008
Reeditado em 11/11/2009
Código do texto: T1003481