A Lagartixa

A lagartixa

Num dia em que as flores de minha varanda floriram mais que o costume, em anúncio gentil de bons augúrios, em lugar de passeio ao ar livre - compras. Nada cai melhor a uma mente feminina trôpega de infortúnios ou desejos frustrados. Relaxam mais que ansiolíticos de fama internacional.

Recuso-me a ir a shopping. Sou do tempo das lojas chiques do Centro da Cidade à beira das calçadas bem cuidadas, sem vislumbre de pedra portuguesa solta , buraco ou camelô. Perpasso, pois, as vitrines das butiques da Zona Sul da cidade e exploro todos os cantos, à cata de algo de preço menos estonteante. Alguma peça que, além disso, tenha certo toque de originalidade, pobretona exigente que sou. Qualquer coisa mais próxima às lojas de classe média alta , sem ferir o bolso e a bolsa mal equipados do que mais interessa.

É claro que dispenso as extravagâncias dos trajes in dos desfiles da moda européia, americana, ou mesmo, brasileira, de hoje: babados e bordados aos borbotões, quando não mesclados de lantejoulas, miçangas, canutilhos e outros brilhos. Também não estou tão mal de grana que precise comprar no Saara, nosso império da moda pobre, ou nos balcões atulhados da Rocinha, o favelão que tem de um tudo. Sem nenhum desmerecimento, mas nem tanto ao mar...

A ponto de desistir, deparo-me com uma camiseta de malha, de tom rosa aperolado e bordado reluzente e dourado, bem no alvo do tiro. Substituo, rápida, os óculos escuríssimos de disfarçar rugas, pelos de lente branca. Decifro, afinal, a forma do único adorno: uma baita lagartixa de pequenas lantejoulas douradas. Quase grito.

Desmancha-se, no ato, o prazer fútil. Arrepiada de medo e asco, pulo, jovem atleta, para um táxi que me afaste do objeto do meu horror, pensamento fixo na forma de rabo fino e comprido.

- Depressa, moço! Preciso chegar logo em casa. Tenho visitas para o jantar -, menti, descarada, a sonhar com minha casa, sem lagartixa até hoje, graças a Deus!

Durante a pequena viagem, tremo ainda. A pouco e pouco, respiro fundo, vou-me acalmando, à medida em que reflito sobre o absurdo da situação. Pavor ao símbolo fálico? Trauma infantil com cobras, por conta da caixa de fruta de conde, que despejou uma serpente bem grande no quintal de minha casa de criança? Lembrança maldita do dia em que descansei o braço num lagarto simbiótico, que repousava ao sol, em cima de uma pedra, em praia de Maceió?

Vai-se o táxi, ficam os pensamentos. Nem boa-tarde digo ao porteiro. Jogo-me, extenuada, em minha poltrona de estimação. Nem sequer me lembro de acender a luz e ligar o ventilador de teto, ações habituais para quem vive no calor.

Até quando vou permanecer com a reação estúpida, diante dessa miniatura branca de jacaré, tão pouco pecaminosa e, como dizem, bastante útil ao ser humano? As lagartixas não nos mordem, não exalam veneno e aliviam-nos dos infernais mosquitos, de país tropical e cidade poluída. É voz geral. Menos a minha, Senhor dos Céus!

Lembro-me, envergonhada, de inúmeros vexames provocados por lagartixa. O dia em que, convidada por amigos de ”fina estampa” para uma casa de campo antiga e linda, estrago o sabor e o sorver prazerosos do vinho tinto, ao derrama-lo no sofá branco, de caro pano rústico, por conta de uma lagartixa quase da mesma tonalidade, percebida no teto, logo acima de minha cabeça. Ai!!! A mancha cor de sangue, provavelmente indelével! Susto geral e nenhum convite posterior!

Fobia começa na infância, sem dúvida. Com oito anos, no máximo, num triste dia de inverno, daqueles invernos definitivamente invernais que desapareceram do Rio de Janeiro, na casa de meus pais de ducha farta, estou no chuveiro morno e, súbito, sinto na pele uma pedrinha de gelo emborrachada. Cai-me do teto, bem nas costas molhadas, uma lagartixa desequilibrada, de porte médio. Para meus gritos histéricos, uma cobra venenosa esfaimada. Nua pela casa, mancho o chão encerado a capricho, em época sem sinteco e deixo estupefato um visitante casual, um padre, logo um padre, amigo de papai.

Moça doida por praia de água serena, convenço meu pai a comprar, a suor, uma casa antiga, branca, de portas e janelas azuis, imitação das casas coloniais portuguesas, na lagoa de Maricá. Apresso-me a conhecê-la. Adoro cada cômodo, instalo-me no quarto de solteira e, na volta das longas horas de sol, ao escurecer, todos à varanda. Pesadelo à vista, pressinto a impossibilidade de dividir a varanda com várias intrometidas lagartixas. Encafuo-me no quarto, após inspeção minuciosa do teto, perco a brisa do anoitecer, os papos açucarados ou picantes dos convivas. Pior: nunca mais freqüento a varanda, não importa os apelos da família.

Abro inquieta um dicionário ilustrado. Apesar da foto, por si só, asquerosa, procuro razões para meu pavor: ...da família dos geonídeos... insetívoros e trepadores... pele delicada... cauda capaz de sofrer autonomia.... Começo a achar bonito quando...Pronto! Tenho pavor da famosa autonomia “lagartixeira”, que determina vida tremelicada pós-morte à cauda separada do corpo. Aflição pura e simples; quiçá um tanto de inveja. Como é que se pode aceitar um bicho que não morre, enquanto nós acabamos por inteiro, sem rabo que sobre? E pelos motivos mais bestas: válvula entupida, tranco na rua, tombo em casa, sufoco de fumaça...? Pura esnobação da insignificante geonídea.

Enquanto quebro a cuca, remoída pelo esforço de catar a causa de minha velha e onipresente tortura, uma lagartixa bem branquela, daquelas de barriga azulada e olhos protuberantes de piche, inicia seu deslizar sub-reptício pela parede do escritório. Lá do alto, percebo que me olha. Vejo-a pousar em cima de meus livros.

Ah! Sua danada! Não, aí definitivamente não. Sustento a náusea, engulo o vômito e o pânico. Procuro uma arma letal. Acho uma vassoura de piaçaba, atiro a bicha no chão de um só golpe, tal qual Arnold Schwazzenegger antes de se tornar governador da Califórnia. E...zaz!

Trucidada, a maldosa criatura deixa-me de suvenir, bomba de efeito retardado, o rabinho desafiador.

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Maria Lindgren
Enviado por Maria Lindgren em 28/01/2006
Código do texto: T105120