Faz de conta

Quando estava sozinha, mais sozinha que aquela última barata estará depois do fim da Terra, era quando sentava-se como um pequeno feijão no assoalho e deixava-se abraçar pela água do chuveiro.

A água tem isso de abraçar os solitários, de envolvê-los como mães com as quais eles não contam. Assim era uma forma de a mulher encontrar-se consigo, de prantear sem culpa e sem vergonha, de sentir suas dores tão gritantes como eram dentro do seu peito.

Sua mente construía imagens de abandono, de crianças perdidas, de noites frias, de ela chamar e ninguém ouvir.

Naqueles momentos ela pranteava por cada um dos pequenos abandonos que vivera, passava-lhe um filme na mente.

Muitos dos conteúdos, os mais tristes e insuportáveis, apenas lhe tocavam a pele da consciência e seguiam nadando entre os outros.

Sobre estes ela não alcançava detalhes, senão nas imagens decodificadas dos sonhos, que é quando revivemos disfarçadamente as batalhas psíquicas que perdemos, as violências mais tenras a que fomos vítimas, os nossos desejos mais escusos e inconscientes.

Era uma menina cheia dessas coisas, de momentos de rir e momentos de chorar.

De estudar os próprios sonhos, de fazer grandes tempestades sobre sua dor.

Da tempestade que fazia internamente alimentava-se para viver, e tornava-a água física debaixo do chuveiro.

Era dramática mesmo, sabia-o, e sabia-o também nos momentos de dor.

Sua autoconsciência estava presente ali com ela no cantinho branco de azulejo, sabia que se fazia uma criança abandonada naquele instante, e era.