A MENDIGA

Era uma noite quase fria, em junho de 48.

Parei para acender um cigarro e olhei, distraído, para as águas calmas da enseada, onde se refletiam as luzes da cidade.

A praia de Botafogo estava deserta, àquela hora da noite.

Alguém tocou em meu braço. Interrompi minha meditação, para olhar aquela mão magra, aquele braço mal coberto por uma desbotada e rota manga de lã, aquele rosto minguado de olhos fundos, aquela cabeça despenteada e grisalha.

-- Uma esmolinha, meu filho, pelo amor de Deus!.

Examinei a mulher a meu lado. Era velha, muito velha. Trajava um vestido que talvez houvesse sido branco e um casaquinho de lã de cor indefinida. Seus pés procuravam , numa inútil tentativa, esconder sua nudez em chinelas rasgadas. Seus cabelos desalinhados caíam-lhe até os ombros, curvados ao peso dos anos. A boca, encolhida pela falta de dentes, realçava a proeminência do queixo fino.

Procurei um níquel no bolso, enquanto a velha me examinava, com estranho interesse.

Eu não tinha dinheiro trocado. Convidei, por isso, a mendiga a me acompanhar, para comer qualquer coisa. A fome, possivelmente, fez com que ela aceitasse o meu convite.

Enquanto caminhávamos, a pobre mulher continuava a olhar-me com insistência.

De repente, num arrebatamento incompreensível para mim ((talvez uma estranha gratidão), apoderou-se de minha mão, cobrindo-a de beijos murchos e lágrimas ardentes. Procurei, embaraçado, retirar a mão presa entre as dela. Só o consegui, quando chegamos ao "café", onde a anciã, num instintivo impulso de vaidade, soltou-me para enxugar, na ponta do casaco, os olhos úmidos.

O "café" estava quase vazio. Um dos "garçons" discutia, na pequena cozinha, com o negro e beiçudo "mestre", enquanto o outro limpava, com um pano imundo, uma das mesinhas de mármore.

Atrás do "caixa", o obeso e lusitano patrão lia um jornal, palitando os dentes. Em uma das mesas, quatro boêmios marcavam, em caixinhas de fósforos, os compassos de um samba.

Ela comeu em silêncio. Terminada a frugal refeição, limpou, com o pequeno guardanapo de papel, a boca engordurada de manteiga e fitou-me com um olhar triste, misto de amor e de saudade.

-- Você, meu filho, se parece muito com um moço que conheci há mais de cinqüenta anos...

Acendi mais um cigarro, esperando a história que viria, fatalmente.

-- Você me trouxe tristes recordações... Sabe? Já fui rica e bela!... Estas mãos, -- disse, mostrando os dedos magros, -- já foram beijadas muitas vezes!...

Deixou cair os braços, com gesto de desânimo e, novamente, examinou o meu rosto.

-- Você se parece muito com ele!... --, como se estivesse falando sozinha.

-- Conte-me a sua história, vovó!. -- falei com brandura.

Ela pareceu olhar para um passado muito distante.

-- Chamo-me Francisca e tenho setenta e cinco anos... -- começou.

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Tudo começou um ano antes da proclamação da República.

Francisca tinha quinze anos e cabelos pretos. Era bela. Seu corpo de mulher, oculto por vestidos de menina, era uma promessa de amor; seus lábios carnudos e vermelhos, eram uma constante sugestão de beijos; e seus olhos negros e inquietos, sorridentes e infantis, deixavam vislumbrar, no fundo de suas pupilas, toda a concentrada ardência do sangue brasileiro.

Ela reunia qualidades que, dificilmente, apareciam juntas, naquela época, em uma mesma mulher: beleza, inteligência e cultura. A primeira, herdada de sua mãe, dona Cecília, descendente de espanhóis; a segunda, herdada de seu pai, o Comendador Menezes de Albuquerque que, por passatempo, exercia o cargo de mestre na Escola Politécnica; a última, adquirida com a leitura dos tesouros que adornavam a biblioteca do luxuoso palacete onde vivia.

(Pretendo usar esta crônica, futuramente, como prólogo de um romance sobre uma història de amor ocorrida na época da propaganda, conspiração e proclamação da República e que se chamará "Meu avô chorou...").

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Julio Sayão
Enviado por Julio Sayão em 31/01/2006
Reeditado em 04/02/2006
Código do texto: T106397