Sozinha...

Perfume doce, achocolatado, escorregadio. Duas ou três borrifadas, dependendo do humor. A lente de contato tentava se equilibrar na digital do indicador direito. Nem azul, nem verde. Coisa de menina sem vergonha mudar a cor dos olhos. Mais honesto deixá-los leitosos, como os cegos que insistia em encarar do outro lado da calçada, ironicamente hipnotizada. Não conseguia enxergar de longe, pelo menos gostava de pensar assim. Tudo bem, tem gente que morre sem enxergar um palmo na frente dos olhos. Chorou quando a ponta da unha tocou o branco do globo. Ainda não estava acostumada.

Espalhou creme como fazem em comerciais. Não precisava se sentir gostosa, não mesmo. Queria é valorizar cada centavo do sonho que lambuzava aqueles potes. Sonhar não custa nada? Quem disse isso deve ter morrido enquanto dormia. Sozinho, sozinha e com a pele ressecada.

Atendeu ao celular no sétimo toque. Quem ligou devia conhecê-la bem. Talvez até demais. Dois sorrisos espontâneos encerraram os poucos segundos da conversa. Antes que desligasse suspirou qualquer “está tudo bem” apressada. Logo em seguida, mais alguns toques. Agarrou o aparelho ainda de camisola, franzindo a testa ao verificar o número do display. Desprezou a ligação sem dizer nada. Melhor se fingir de morta.

22 graus. Sempre regulava o ar-condicionado nesta temperatura. Nunca mudaria. Uma de suas manias a obrigava a escolher entre 11, 22, 33, 44, repetindo os números que atravessavam seu caminho. Naquele caso, qualquer escolha diferente a faria sofrer. E isso, jurou que nunca mais aconteceria. Nem com ela, nem com mais ninguém. Melhor dois patinhos na lagoa do que um afundado.

Acionou as incontáveis polegadas do painel de LCD sustentado na parede. Gostava de deixar no desenho animado. Dobrava a barriga cada vez que gargalhava, mesmo que a programação se repetisse em ritmo frenético. Preparava-se par aumentar o volume quando ouviu um barulho na cozinha. Agudo. Alto.

Caminhou sem pressa, assoviando a música que estalava das caixas surround da televisão. Abriu a porta e encontrou o corpo transpirante amarrado à cadeira. Estilhaços de um copo quebrado criavam um mosaico no chão. Os olhos da vítima esbugalhavam como se quisessem fugir da órbita. Aproximou-se devagar, esfregando as meias rosas no piso de mármore. Afastou momentaneamente o pano que cobria a boca do ser agitado, esforçando-se para decifrar sua fala rouca.

- Você... precisa... me soltar... agora...

- Nananinanão. Ainda nem cheguei no seu quarto, vovó.

Trancou a porta, voltou à suite dos pais e pegou novamente o vidro de perfume.

Duas ou três borrifadas, dependendo do humor.

Felipe Valério
Enviado por Felipe Valério em 06/07/2008
Reeditado em 06/07/2008
Código do texto: T1068262
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