Hipérbole

Izidoro pousou o cinzeiro sobre a mesinha de centro. Abriu o jornal. Foi direto para a coluna do Xavier Luflanco. O cronista que sempre vinha com um texto que lhe interessava. A partir, sobretudo, dos títulos que escolhia para as suas matérias. Como esse de agora:

Hipérbole

"(O nome é fictício, mas o caso é verdadeiro.)

Cerejo foi para a casa da companheira em Saquarema e sumiu. Depois de três dias, a família começou a se movimentar, já que ele não tinha esse hábito. O corpo foi achado nas proximidades de Saquarema com três balas na cabeça e vestígios de tortura. Levaram-lhe o carro, os documentos, tudo.

Cerejo era um dos encarregados das obras que fiscalizamos na Prefeitura. Era um dos melhores, respeitado por seus comandados, sobre quem exercia incontestável liderança. Tinha também a admiração dos moradores nos Rios-Comunidade da vida que fazemos em diversas áreas consideradas "carentes".

Seu caso é mais um no trágico noticiário de cada dia do Rio, Niterói, São Gonçalo, Região dos Lagos, Região Serrana, etc.

Situação ideal: o delegado da área deveria ter de 30 a 45 dias para elucidar o caso ou pelo menos apresentar fortes indícios da sua possibilidade de elucidação. Caso contrário, perderia o posto. Isso valeria para todas as delegacias no âmbito do Estado. Casos de corrupção ou abuso de autoridade ou execução sumária de pessoas (nada a ver necessariamente com o presente) na esfera policial seriam apurados através de Comissões de Inquérito internas. Havendo provas incontestes contra os autores dos ilícitos, os mesmos seriam sumariamente demitidos "a bem do serviço público".

A adoção de medidas nesse sentido e de outras da mesma natureza, amparadas pela competente legislação específica, incluindo o treinamento adequado dos policiais e uma remuneração condizente com a periculosidade do serviço, teriam como resultado certo a redução do índice de impunidade. A sua conseqüência imediata seria o aumento da segurança. É o gráfico da hipérbole, se não estou enganado. Quanto menor a impunidade, maior a segurança. Todos os crimes, sobretudo os de morte, teriam que ser apurados. Ou pelo menos a maioria deles. Hoje dá-se o inverso. Praticamente não se apura nada. A família do Cerejo ficou sem ele e pronto. Como a nossa poderá ficar sem um de nós um dia e pronto.

Quando se trata de segurança, sabemos que a competência maior fica a cargo do Estado. No entanto, nunca é demais lembrar que o bem-estar do cidadão deveria ser do interese maior do Prefeito, primeira autoridade da cidade. Então, medidas como as que sugerimos, ou outras de melhor concepção dentro da mesma conceituação, deveriam ser defendidas pelo cidadão eleito para cuidar da cidade. O mandato a ser conferido pela população da cidade dá autoridade ao Prefeito para que ele exija das autoridades competentes medidas que garantam o aumento dos índices de segurança nas ruas de nossa cidade. É no que devemos pensar, nessa época de eleições".

A leitura foi curta. O texto até que tinha sido pequeno. E, por isso, não muito chato. Percebeu que o cigarro não tinha chegado à metade. E que a mulher, que continuava fritando uns bifes na cozinha, não tivera tempo para interrompê-lo. Mas não conseguiu lembrar-se do gráfico da hipérbole. Suas aulas de matemática, e de contabilidade depois, estavam muito lá atrás. De qualquer modo, "quanto menor a impunidade, maior a segurança". Fatores nesse caso (ou em todos os outros?) de características inversamente proporcionais. Aplicáveis aos juízes também, pensou logo. Mas se nem o autor tinha certeza do gráfico!

A essa hora os bifes começaram a cheirar tanto que Izidoro não conseguiu manter-se sentado. Seria ele que iria interromper a mulher na cozinha. Totalmente alheio à questão das próximas eleições. Como também ao caso do Cerejo, cujo nome começava agora a confundir com o do jogador Toninho Cerezo, que nunca jogara no Rio.

Rio, 23/08/2008

Aluizio Rezende
Enviado por Aluizio Rezende em 23/07/2008
Reeditado em 24/02/2009
Código do texto: T1094513
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