CRISES

- Sei lá, cara. Ela mudou muito.

- Mudou como?

- Mudou, mudou, não sei bem como. Mas mudou.

- Impressão, Romualdo.

- Pára com isso, Getulio. Quem dorme com ela sou eu. Eu sei que mudou. Se eu tô dizendo que ela mudou, é porque mudou. Eu sinto isso, entendeu? Eu sinto.

- Não sei, Romualdo, é assunto íntimo de vocês, pra você abrir assim...

- Porra, Getulio, eu e você nos conhecemos faz o quê, quase vinte anos? Você é meu amigo, não é?

- Claro.

- Então, me ajuda, me diz aí o que é que eu faço.

- Não faz nada, deixa assim. É fase, todo casal passa por uma dessas de vez em quando. Depois volta tudo ao normal.

- Você fala isso porque tá separado há um tempão. Ou seja, nem você suportou uma barra dessas, já foi largando mulher, casamento...

- Opa, opa, opa. Eu não larguei ninguém, não. Fui largado. A vítima da história, entendeu?

- Também, meu chapa, você nunca foi flor que se cheire...

- Pois é, ela sabia dos riscos. Não pode reclamar.

- Então, Getúlio. Pra você ver. A Milena está assim... distante.

- Sei.

- Monossilábica, entende?

- Entendo.

- Parece outra.

- Arrã.

- Finge que eu nem existo.

- Barra. Sexo?

- Nada. Só quando eu procuro e, ainda assim, na base do “vamos-logo-que-amanhã-tenho-que-acordar-cedo”.

- Vocês não saem mais pra jantar fora, ir ao cinema? Vocês viam tanto filme juntos...

- Não dá nem vontade de convidar, há dias que quando chego em casa, à noite, ela já até vestiu o pijama, jantou e está pronta pra ir pra cama. Dormir.

- Mas é aí que você entra, Romualdo.

- Entra, como? De que jeito? E agora piorou, depois que começou a ler os livros do Dan Brown. Lê na cama, antes de dormir.

- A Milena tá lendo Dan Brown???

- Pra você ver.

***

- Alô.

- Oi, Milena, sou eu.

- Ooooooooooiiiiiiiiiii, delícia.

- Porra, Milena, você tá louca?

- Que que eu fiz?

- Ele tá desconfiado, ontem começou a falar umas coisas esquisitas na hora do almoço.

- Mas nós não combinamos que era pra...

- Combinamos, mas não exagera.

- Uma hora ele vai ter que saber, não vai?

- Sim, mas combinamos também que era pra ir devagar, lembra?

- Hummmm... jura?

- Não brinca, Milena, tô falando sério. O combinado era pra ir dando uma gelada nele, com toda a pinta que você não está mais a fim de manter o casamento, está cansada da rotina, da casa, das obrigações de esposa, blábláblá, até chegar um ponto em que o melhor será a separação. Não foi isso que a gente combinou? Pô, daqui a pouco não vou mais ter nem cara de encarar o Romualdo.

- Que bobagem, Getúlio. Encara como sempre encarou, oras.

- Outra coisa.

- O quê?

- O Dan Brown.

- Que que tem?

- Desde quando você tá lendo Dan Brown?

- É de uma amiga da Academia, peguei emprestado.

- Mas você não me disse nada que ia começar a ler Dan Brown...

- Ué, e precisa avisar, agora? Olha, Getulinho, acabei “O Código Da Vinci” e vou começar “Fortaleza Digital”. Só me faltava essa.

- Mas você não ia ler o novo do Vargas Llosa, Milena? Nós combinamos isso quando saiu aquela resenha no jornal.

- Ah, depois eu leio. Agora tô lendo Dan Brown.

- Sei. Certo. Não, tudo bem, deve ser uma fase.

- Você está tão estranho, Gê...

- Temos que ter cuidado, Milena. Ele está desconfiado.

***

- E aí, Romualdo, como vão as coisas?

- Bem, bem. Parece que vem uma conta nova por aí, uma empresa com quase cem funcionários. Não deve ser lá essas coisas, mas aumenta o volume de negócios da agência. Passei para a Diretoria hoje, acho que assinamos a minuta ainda esta semana.

- Ah... Sei. E em casa?

- Tudo em ordem, Getúlio. Bom esse café, hein? Mudaram de marca?

- E a Milena?

- Que que tem a Milena?

- Vai bem?

- Ah, sim, vai bem. Aliás foi bom você perguntar, quase me esqueço que antes de ir pra casa tenho que passar na locadora.

- Algum filme novo?

- A Milena viu num saite desses que saiu “O Código Da Vinci” em DVD, e tá louca pra assistir. Não vou perder uma chance dessas, né, meu amigo? Botamos as crianças na cama mais cedo, uma pipoquinha depois do jantar, esse friozinho de fim de maio...

***

- Oi, você ligou para a Milena. No momento não posso atender. Deixe seu recado após o sinal.

- Milena, sou eu, Getúlio. Me liga. Aonde é que você anda?

***

- Getulio, você que vive em livraria, diz aí: preciso comprar um livro que a Milena pediu, aonde é que eu vou?

- Depende do livro, Romualdo. É algum lançamento?

- Não sei se é lançamento. É aquele do Dan Brown. Gostou tanto que pediu pra comprar um, que o que ela leu era emprestado.

- Bom... esse aí você encontra em qualquer lugar. Não vai precisar procurar muito.

- Você podia ir comigo, de repente me ajudava a escolher mais alguma coisa para a Mileninha...

- Tenho mais o que fazer, Romualdo, do que ficar ajudando você a escolher livro. Ainda mais um livro desses.

***

O tempo passou e, como já era de se esperar o Getulio, por assim dizer, dançou. E a última vez que a viu foi saindo do cinema abraçada com o Romualdo, à noite, toda sorridente e com um vestido azul lindo, que ele nunca tinha visto. Resumindo, maravilhosa. O Getúlio apressou o passo e entrou numa livraria, tentando ainda ver o nome do filme no letreiro, mas não conseguiu. Só sabe que era um com o Tom Hanks.

Benilson Toniolo
Enviado por Benilson Toniolo em 11/08/2008
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