Sabão de Cinzas

Tem certas coisas que passam por nossa vida e ficam armazenadas lá no fundo esquecidas e, de repente, motivado talvez por um aroma, tom de voz, aquela cor e então o fato, empurrado aflora, volta claro, forte e colorido. Não estou falando dos grandes acontecimentos não. Falo das pequenas lembranças, das coisas insignificantes que passam despercebidas e quando menos se espera, elas se anunciam, aparecem vivas vibrantes em nossa memória.

E foi assim que aconteceu quando em outro dia, algum aroma desprendido por acaso me trouxe a lembrança do meu primeiro banho com xampu - Sabão Aristolino. -. Minha mãe chegou com um vidro parecido com o temido óleo de fígado de bacalhau, - escuro e chato - que logo de manhã em jejum, era empurrado a força garganta abaixo.

Em pé na banheira, olhava desconfiado para o líquido preto que era entornado na mão de minha mãe para depois ser suavemente espalhado pela massagem sobre a minha cabeça. O perfume no momento foi espetacular. Abafou todo o cheiro forte de sebo com soda cáustica do famoso sabão de cinza que me ensaboava. Achei aquele momento divino. Entretanto, talvez pelo preço ou mais provavelmente porque era criança, e criança no meu tempo não tinha lá tantos direitos, raramente o acontecimento com o Sabão Aristolino voltou acontecer.

E foi o cheiro do meu primeiro xampu que voltou à cena em uma avenida movimentada de Vitória e que me levou a lembrar do banho e do sabão de cinza, feito na “cozinha de baixo”, da casa de minha avó em Campanha.

Para ver a sua fabricação, sentava-me no degrau da porta e prestava atenção no barulho ritmado que tomava conta do barracão onde ficava o fogão de lenha com suas lingüiças secas dormitando no arame esticado sobre o fogão.

Tinha uma comprida mesa de passar roupa que levava como adorno o moedor de café fortemente atarraxado em suas bordas e um tijolo completando a altura que faltava em um de seus pés.

No fogão de lenha o fogo crepitava alto. Fervia uma mistura que eu acreditava que era feito por uma bruxa.

Em outro canto, já aberta, “longe das crianças” a lata de um quilo de soda cáustica em escamas, marca Jacaré, esperava a hora de acompanhar a mistura, para ser mexida até dissolver.

Fervidos no enorme tacho de cobre, com água, ossos de boi previamente triturados com o “olho” do machado, sebo e 400 gramas de breu, era mexido até virar um mingau.

A negra forte sabia do ponto de água e ingredientes de tal forma que a mistura sempre dava sete litros bem medidos. Quando dava o “ponto”, a negra enchia com a mistura a lata de banha cheia de furinhos no fundo, engarranchando a sua alça de arame no alto do caibro e colocava uma bacia no chão, bem debaixo para aparar o caldo que decantava da mistura. A cozinha enchia com o som tamborilado dos pingos.

O resultado da alquimia virava uma massa mole e ainda quente, era entornado na forma de madeira para, ao esfriar, transformar-se em um imenso sabão de pedra amarela, que no futuro, era cortado na conveniência de sua dona.

O certo e que mais tarde, iria se acabar soltando espumas na nossa pele, que ficava vermelha e ardida pelas esfregadas da bucha vegetal.

De quebra, eu acompanhava o ritual do passar de roupas, regido pela negra forte, sempre descalça, olhando deliciado o vai e vem do ferro à brasa que emitia um chiado ou gemido, parecendo fazer segunda voz ao batuque da pingueira.

O ferro quente, como uma locomotiva, percorria com agilidade ao redor dos botões da braguilha, dos contornos das casas e dos frisos do terno de linho 120, na tonalidade de um branco puxando para o amarelo claro, vítima do sabão de cinza.

O calor do ferro desprendia o cheiro de polvilho da goma que descansava na bacia pequena de alumínio e era espalhada vigorosamente com um pano encharcado.

De vez em quando, ou para despertar ou para brincar, a passadeira agarrava a alça de madeira do pesado ferro, atiçando o fogo nas brasas. A negra girava o braço, fazendo o ferro parecer uma roda gigante, realizando três movimentos circulares, soltando pelo bico do ferro fumaça e fagulhas, espantando o sono, as moscas e as galinhas que “pastavam” debaixo da mesa.

Enquanto isso, aproveitando o fogo da fervura, no forno do velho e trincado fogão de lenha estavam assando, rachando e crescendo devagar, os mais deliciosos pães de queijo.