Repetir, repetir, até ficar diferente*

Engraçado é que no meio do carnaval, dei conta de me repetir há dez anos. Foi quando eu estava sozinha, deitada pra dormir, sem sono nem vontade, e liguei meu radinho de pilha: coisa que serve pro medo dos pensamentos. Coisa que, inclusive, me (des)encaminhou na vida: de tanto ligar o radinho no meio das noites sem sono nem vontade, dei conta de que as FMs sempre tocam as mesmas músicas e que, nas AMs, o mundo é um acontecimento sem parar.

Daí foi que as noites com o radinho na AM me fizeram querer conhecer o mundo através do jornalismo. E foi também nessas noites, entre a AM e o sono, que eu dei em pensar na minha vida dali a alguns anos.

Em um desses pensamentos, que persistiu por muito tempo e voltou no domingo de carnaval, eu moraria sozinha num quarto-sala. Eu seria ou uma profissional muito bem sucedida ou uma mestranda. Teria uma escrivaninha bagunçada de coisas a serem resolvidas, ligações a serem feitas ou livros a serem estudados, e, de parede, teria uma estante que iria do chão ao teto. Eu seria solitária, sempre solitária, mas extremamente contente por estar ocupada demais com todo o meu mundo que eu tinha de dar conta. A música de fundo seria uma bossa, um jazz ou um samba-canção bom de ouvir.

Tudo aconteceria como as músicas cantavam (música sempre mexeu muito comigo). Teria um dia, então, uma sexta-feira, jamais um domingo, que tocaria “Dois pra lá, dois pra cá” e alguém que eu muito queria chegaria, me convidaria pra dançar, me diria que era só dois pra lá, dois pra cá. A gente dançaria como eu sempre quis dançar “Dois pra lá, dois pra cá”: amorosamente (coisa que eu ainda nem sei se é bom ou ruim porque eu ainda não dancei “Dois pra lá, dois pra lá” sequer desamorosamente).

No meio da dança, quando o band-aid já torturava o calcanhar, eu me senti mal por ainda pensar como a menina de 14 anos que ainda tinha de passar no vestibular dali a três anos e passar por tudo o que aconteceu em dez anos. Mas nem era, eu podia fazer jus aos anos, e fiz: levantei, botei pra tocar repetidamente “Dois pra lá, dois pra cá”, e bebi whisky com guaraná até.

*Manoel de Barros.

(crônica publicada no site www.patio.com.br/cronica)

Cristina Carneiro
Enviado por Cristina Carneiro em 03/03/2006
Código do texto: T118117