Trágicos trafegares urbanos*

CENA 1

Não vejo a hora de chegar em casa, tomar um banho e bater um rango. Depois deitar no sofazão e assistir tv. Mas a essa hora, o trânsito deve tá daquele jeito, não quero nem ver. Caracas, tô precisando de férias, urgente. Não agüento mais esses clientes filhos da puta enchendo o saco...

Aaaai, esse cara não vai entrar na minha frente! Puta cara folgado! Tá pensando o que? Vou acelerar, não vou deixar você entrar na minha frente. Nem adianta ligar a seta. Ai, quase não consegui.

Há há há, fica aí pra trás Mané.

Já não chega os clientes, ainda tenho que agüentar uns bração desses!!

Ai caramba! Não acredito que esse farol também vai fechar!? Acelera viado, sai da frente, pé-de-breque! ... Ufa! Quase que não consigo. Tem uns cara que eu não sei como consegue tirar carteira de motorista. Parece umas mocinhas dirigindo.

Esse som é dá hora, vou aumentar o volume... Porcaria de auto-falante, não posso aumentar um pouco o volume que ele distorce todo o som. E esse cd player pula mais que sapo. Vou comprar tudo novo, nem que seja no robauto.

Caráio, tenho que entrar ali naquela rua. Ferrou, vou dar a seta e vou entrar, que se dane.

Peraí mermão, deixa eu entrar! Calma, eu preciso entrar ali, porra! Por que tá buzinando? ENFIA ESSA BUZINA NO CÚ, CARÁIO!!!

Putz, quase que eu não consigo.

Eita, toda rua que eu entro tem alguém pra atrapalhar... Nossa! Que demora pra tirar o carro dessa vaga. Anda tia, sai logo com essa lata velha daí, eu tô com pressa! Vou buzinar na orelha dela...

BIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIIII

Há há há... Assustou, tia!? Até que enfim. Sai fora! Agora acelera essa porcaria, saco!

Não posso esquecer o dinheiro da quadra amanhã, já estão me cobrando... Outro farol vermelho!? Hoje tá difícil, não vou chegar nunca desse jeito. Já sei, vou pegar essa avenida aí. Certo, o trânsito tá livre. E aqui não tem radar. É só tuchar o pé... S

ai da frente viado, certo, aí vou eu.

Opa, vacilou, vou entrar na sua frente, laranjão. Já era, ficou pra trás. Ai, o farol vai amarelar. Vai motorzinho, vai... Aêêê,... um farol a menos.

CÊ É LOUCO!? QUER MORRER ZÉ-MANÉ!?

Putz, tem uns caras que são sem noção, nem olham pra atravessar. Tá vacilando... Depois que é atropelado, a culpa é do motorista, dá licença...

E o que que esse outro carro tá querendo aí atrás? Só por que tá com esse importado pensa que tá podendo?

Vai chifrudo, me passa então... Agora você vai ver! Vou te empurrar! Ah, tá acelerando!? Não pensa que vai fugir não!... Tô encostando, tô encostando... há há há, gelou, né!? Isso, agora vira aí e vai embora, braço duro... he he he... Pensa que vai embora assim, é!? Calma que eu te pego, vou virar atrás de você... ops...

...um carro parado, vou jogar na contra-mão, é rapidinho, dá temp... SAAAAAAI CARÁÁÁÁÁIO!!!!

CENA 2

Apesar do dia duro que teve, não resistiu ao apelo sensual da mulher. Já havia jantado seu feijão com arroz. E também o bife, que raras vezes podia desfrutar, normalmente no começo do mês, quando recebia seu salário apertado. Fez amor com a esposa como se fosse a última vez.

Pouco depois das cinco horas da manhã, todos na pequena casa alugada já estavam acordados. A mulher pra cuidar do bebê. O marido pra ir trabalhar. As outras crianças pra irem pra escola. Beijou a esposa como se fosse a última. Beijou cada filho como se fosse o único. E saiu.

Andava pela rua, cabisbaixo. Imigrante tímido. Viajou uma hora e quarenta minutos pela cidade dentro de um ônibus lotado com pessoas de condições parecidas com a dele, partindo da periferia, rumando ao centro. Assim que chegou à obra, tomou seu café e subiu a construção como se fosse máquina. Tijolo por tijolo, num desenho mágico, ergueu no patamar quatro paredes sólidas. No olho o cimento e a lágrima que vieram com o vento.

Na hora do almoço, sentou pra descansar como se fosse sábado. E como sempre, comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe. Descansou um bocado, tomou outro café e voltou ao seu posto. E até o final do dia ergueu mais quatro paredes sólidas, se equilibrando entre um andaime e outro. O vento não o impedia de cumprir suas tarefas. E nem o cimento nos olhos lhe tapou a sua realidade.

No fim do expediente, antes de ir pro ponto esperar o ônibus que o levaria de volta ao lar, cotidianamente passou no bar. Bebeu e balançou como se fosse um náufrago. Dançou e gargalhou como se ouvisse música. Depois de mais um dia trabalho ia voltar pra casa. Não terminou de atravessar a rua. Foi acertado em cheio. Voou no ar como se fosse um pássaro. E se acabou no chão feito um pacote flácido. Agonizou no meio do passeio público. Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.

*inspirado em Construção - música de Chico Buarque

Leonardo André
Enviado por Leonardo André em 09/03/2006
Reeditado em 09/03/2006
Código do texto: T120845