Tuas sextas, minhas terças...

Ao contrário de 99.9% dos nascidos nessa terra, nunca tive apreço especial pelas sextas-feiras. Não ligava muito para elas nos meus tempos de faculdade. Se todo dia era Dia de Índio (como proclamava Jorge Ben - agora, Benjor), todas as noites eram noites de sexta para mim. Depois, trabalhando, sexta-feira passou a ser sinônimo de tortura.

Dia de trabalho triplicado. Sabia-se a hora em que começava e jamais tinha-se certeza se, de fato, terminaria. Sexta. Dia de pescoção, de adiantar o jornal de domingo, fechar as matérias especiais. Assim eram chamados os textos laudatórios, que eram oferecidos aos incautos leitores. E ainda deixar na gaveta duas ou três matérias frias para a edição de segunda. Prevenido vale por dois.

Sexta. Dia de ficar até depois da meia-noite, vampiros da palavra, trancafiados numa redação. Nessa altura, qualquer resquício de elegância já fora destruído pelas nuvens de fumaça de cigarro e pelos litros de café tomados, compulsivamente, na ansiedade de cumprir o horário de fechamento. Indústria é indústria, a linha de montagem não pode parar.

Dessa forma doida, perdia-se o compasso com o mundo lá fora. Quando saíamos, a maioria dos amigos antigos estava de volta à paz do lar. Amizades de infância e adolescência definharam ao longo do tempo, vitimadas por essa ausência de sincronia. Fazer o quê? Eles tiveram juízo e optaram por profissões normais.

Agora, diga. Que importância (ou conotação de liberdade) uma sexta-feira poderia ter para alguém que bateria ponto no sábado e no domingo? E também na segunda, na terça, na quarta até que o ciclo, aparentemente interminável, premiasse-nos com uma folga completa: sexta, sábado e domingo.

Mas aí, também, a sexta se antecipava: acontecia na quinta. Esse calendário, digno de Lewis Carrol, me afastou definitivamente das pessoas normais. Das que pegam no escritório às 8h, têm hora de almoço determinada e saem para a vida às 18h. Trabalhar final de semana, feriados, dias santos, Natal, Ano Novo, carnaval? Para elas, nem pensar. Para nós, dias de tédio nos plantões da redação.

Vivíamos os fatos hoje, escrevíamos as matérias usando o ontem, o que para os outros só seria realidade amanhã. E, quando escrevíamos, amanhã, seria-aconteria depois de amanhã, enquanto o para resto dos mortais a realidade era amanhã. Deu para entender? Não ? Comemore: você integra, felizmente, o grupo dos normais.

Diante de tanta confusão, vivendo em um mundo onde o tempo foi subvertido, o resultado não poderia ser diferente. Caí, admito, sem muita resistência na marginalidade. Passei a viver uma espécie de vida paralela, com calendário próprio e hábitos peculiares. Ingressei numa tribo sui-generis: a dos jornalistas profissionais, que militam na grande imprensa diária.

Para essa trupe, as noites de sexta aconteciam nas segundas e terças-feiras . Noites batizadas, não sei por quem, como "dos profissionais". Do quê? Só Deus sabe. Nessa época, parecia que até os bandidos tiravam folga nesses dias. Nada de relevante acontecia. Poucos assaltos, alguns assassinatos de fim de semana, Executivo e Legislativo ainda na modorra. Tudo parecia conspirar a nosso favor.

Claro, havia exceções: chacinas eventuais em alguma favela distante ou um crime passional em um bairro nobre, rico. Tudo muito episódico. Alto lá! Não pense você que falo assim, de forma jocosa sobre assassinatos e chacinas, por insensibilidade. Ao contrário. Quantas e tantas vezes deixei a redação amargurada, com lágrimas a escorrer-me por dentro. Mas, como guerreiros medievais, nós também precisamos de armaduras, que nos protejam dos golpes do inimigo. No caso, a feia e cruel realidade de uma megalópole.

Mas as segundas e terças nos redimiam. Percebia-se que eram dias especiais pelo frenesi que se apossava de todos. Na segunda, uma certa discrição ainda era mantida. Na terça, perdia-se a compostura. A pressa era descarada mesmo. Reinava a solidariedade entre o reportariado. Um concluía o texto do outro, enquanto o outro ternimava de apurar a matéria do um. O que importava era datilografar o ponto final, entregar as laudas e correr para a Vida, embalados pela voz de Cláudio Zoli e da Banda Brilho, que nos prometiam uma “Noite do prazer”. Saíamos sem olhar para trás, como Ló ao deixar Sodoma.

Essa minha anomalia, que persiste até hoje, quando já não mais trabalho na imprensa diária, não impede que eu perceba o frenesi dos normais. Dia de batom cintilante, perfume na bolsa, decote ousado, calça justa, camisa mais elegante, sapato novo e engraxado, gravata fácil de afrouxar. As mais precavidas, uma muda de roupa na bolsa. Os mais previnidos, camisinhas na carteira.

E fico feliz por todos. Sinto a excitação e a alegria incontidas. Intuo as expectativas que se acumulam com o passar das horas. Calculo o sem-número de vezes em que olham furtivamente para os relógios, contando minutos, segundos. As idas e vindas ao banheiro e à copa, numa tentativa vã de fazer com que o tempo passe mais rápido.

Os ponteiros ficam inexplicamente vagarosos, como se decretassem operação tartaruga. Pura implicância e inveja, sem dúvida. Mas a hora do Angelus chega. E aí, é ir para o crime, com salvo-conduto e carta de alforria. Até segunda-feira, às 8 horas. Pontualmente.

Simone Salles
Enviado por Simone Salles em 21/04/2005
Código do texto: T12366