Poeta não morre: definha

Navegar pela Internet tem dessas coisas. Mais ou menos como ir a uma liquidação das Lojas Americanas. Nós vamos, sem saber o que estará nas prateleiras ou encontraremos pela frente - além da turba de mulheres alucinadas. Então. Estava eu em busca de sites com poesias e prosas traduzidas (artigos, crônicas, essas coisas de literatura).

De cara encontrei um, que a primeira vista me pareceu interessante. Naquela pequena descrição que o Google nos dá, havia uma referência a contos eróticos. Pensei na hora: maravilha, agora encontro aquele poema do Brecht, que é uma ode à preferência que antes, achava eu, ser genuinamente nacional: a bunda.

Por conta de Brecht, do seu apreço pelo derrière feminino e minha intrépida curiosidade entrei no site. Muito arrumadinho, layout modernoso, tudo classificado por tema. A ver: incesto, sadomasoquismo, sexo grupal, lesbianismo, zoofilia, bizarro. Há algo mais bizarro que zoofilia?! Não, por favor, não diga - prefiro permanecer na ignorância.

A lista não termina aí. Não mesmo. Eu é que não consegui memorizar tamanha variedade. Mas, já que estava ali, escolhi um tema leve e fui verificar. Afinal, ajoelhou, reza. Surpreendente. Alguém lembra daquele encarte erótico da revista Ele & Ela? É, aquele com relatos das aventuras e desventuras sexuais dos leitores? Puro Shakespeare, James Joyce, Eça de Queiroz, Machado de Assis, Camões, Saramago se comparados aos escritos cometidos naquelas páginas.

Antes que pensem que sou pudica, vou logo alertando: li quase todos os livros disponíveis do Marquês, de Filosofia de Alcova a 120 Dias De Sodoma. Sem ficar ruborizada ou regurgitar. Li Sade estoicamente, como um legista diante do seu trabalho.

O que me deixou estarrecida nesse site não foram as peripécias sexuais relatadas, mas o assassinato, com requintes visíveis de crueldade, do idioma. Precisei de um lexotan para me recompor. Sem falar, que fui assaltada, mais tarde, durante o sono, por verbos, adjetivos, artigos, substantivos, conjunções adverbiais, crase, locuções adjetivas entre outras assombrações. Pesadelo dos mais terríveis.

Mas, como tudo tem um contraponto, essa semana fui novamente surpreendida. Mas, agora, no entanto, uma grata surpresa. Não que o site descoberto tenha algo de especial, algum poema ou crônica desconhecidos de um autor consagrado. Nada disso. Simples. Clean. Sem aquelas midis intermitentes e chatas, que nos remetem às musiquinhas de espera dos serviços telefônicos de atendimento ao consumidor. Dividido em assuntos, como manda o bom figurino da web, o site oferece uma seção que não tinha visto em nenhum outro - uma página exclusivamente dedicada aos poetas que ultrapassaram os limites do papel e adentraram no mundo da música.

Essa página transborda poemas-cantados, como batizou Caetano Veloso. Reúne poemas-letras de Aldyr Blanc, Vinícius de Moraes, Paulo César Pinheiro, Lenine, Walter Franco, Ana Terra, Abel Silva, Ruy Guerra, Sérgio Natureza, Paulo Vanzolini, Fausto Nilo, Chico e Caetano (claro) e, para enorme alegria minha, Wally Salomão.

Tive o privilégio de conviver com esse doido-baiano-poeta ou baiano-poeta-doido. Baiano, com certeza. Doido de carteirinha, com firma reconhecida e autenticada em cartório, diria Vinícius. Poeta, todo o tempo. Lembro em especial de uma noite, faz tempo isso (e não me perguntem quanto!).

Estávamos no bondinho do Pão de Açúcar, subindo para ver um dos muitos e muitos shows que compartilhamos no Morro da Urca. Abusada, entrava correndo, segurava no primeiro ferro que encontrasse, fechava os olhos e encomendava a alma a Deus. Ele, e todos os habituèes daquelas noites cariocas, sabia do pavor que sinto de altura.

Nessa noite, ele estava no melhor do seu humor, todo generosidade. Para me acalmar, ele declamava as mais variadas bobagens, misturava Nietzche com Castro Alves, uma mixórdia só. Wally se esforçou. Mas, vendo o insucesso de suas tentativas, virou-se para mim e mais baiano que nunca, prometeu:

- Ôxi minina... Se aquiete vai, que já ‘tá me deixando nervoso. Quero tomar uísque hoje não. Ói, o pior que pode acontecer é esse troço cair e você morrer. Ai, eu vou ao seu velório, acompanho o enterro e declamo ao pé da cova os versos que vou dedicar p’ra você. Porque, como sou poeta, não tem hipótese d'eu morrer nessa queda. Poeta, fia, não morre: definha.

Simone Salles
Enviado por Simone Salles em 22/04/2005
Código do texto: T12455