O ACERVO DO ARCÉSIO

Conheci rapidamente Seu Arcésio. Embora já tivesse algumas informações complementares sobre ele. Menos rapidamente, conheci seu acervo.

O acervo do Arcésio situa-se em uma caverna destinada, me pareceu, a tudo o que ele, de alguma forma, valoriza, já que não se desfaz, mas não sabe que destino dar. E o que mais me chamou a atenção é que um de seus filhos, provisoriamente, ocupa um espaço neste lugar.

A denominação de caverna me lembra os antigos egípcios e o dilema sobre a escrita sagrada, composta por uma série de símbolos.

Os hieróglifos egípcios são compostos de ideogramas estilizados de animais, pessoas, objetos, plantas; presentes principalmente em tumbas e monumentos. E renderam anos de estudos para decifrá-los.

Agora meus olhos fixados no acervo do Arcésio tentam decifrá-los, o acervo e o Arcésio.

Decifra-me ou te devoro era o enigma que, segundo a lenda da terrível esfinge, criatura alada que misturava o corpo de mulher ao de leão, se postava na entrada da cidade de Tebas.

Qual será o enigma de Arcésio proposto por seu acervo, cuja escrita não é composta de ideogramas estilizados de objetos, mas dos próprios objetos ali armazenados, ao que parece, propositalmente sem propósito.

O acervo de Arcésio é composto por objetos inúteis. Mas que tiveram utilidade em algum dia. Com o olhar de um antropólogo funcionalista me arrisco a verificar uma sombrinha, entre várias ali disponíveis. Chovia muito na ocasião. A esperança de poder utilizá-la, no entanto, naquele momento, foi maior do que qualquer intenção de decifrá-la. Mas, claro, foi inútil. Percebi que os objetos estão ali guardados não para serem reutilizados. Para quê, então?

Faz-se necessário esclarecer que este acervo não está aberto para visitação, somente o próprio Arcésio o visita quase que diariamente e, por vezes, seu filho, curiosamente, ali se instala e se mistura às recordações do pai e, esporadicamente, me permite a entrada.

Tento decifrá-los, não mais com os olhos de antropólogo, mas com olhos de poeta.

Assim fixei meu olhar na sombrinha que não respondia à sua mecânica de abrir e observei sua estampa de um azul que não aludia à chuva, mas a um dia de muito sol. A um dia de céu azul, sem nuvens. Talvez a uma noite turva, situada em algum lugar do passado, não do antigo Egito, mas de um antigo eu que deve habitar a história de um senhor idoso. Sim, seu Arcésio é idoso. A inútil sombrinha alude a uma noite que, inexoravelmente, surgiria após o dia de céu azul, quando ocorrera o encontro de Arcésio e sua dona, cujo nome ainda não sei, que a usava para se proteger do sol e, quem sabe, para se proteger do próprio Arcésio ou, quem sabe ainda, para se proteger de si mesma.

Vi, em meu poema, uma face branca de mulher desprotegida, talvez feia, talvez bela, talvez especial, interessante e frágil, talvez forte, talvez romântica. Trocaram algumas palavras desentendidas no meio de uma tarde de verão e, antecipando-se à palavra final, um raio partiu-se na sombra de uma nuvem que se formara rapidamente, impossibilitando qualquer escuta para marcar um reencontro.

Não se viram jamais. O raio atingira a cabeça da talvez bela, talvez feia, talvez especial e interessante, e a Arcésio só restara, como lembrança do acontecido, a sombrinha que agora dá saudade de viver. Uma sombrinha azul cobalto, com pequenas estampas de flores brancas, imersa entre tantas outras recordações de Arcésio, em sua caverna. Uma escrita a ser decifrada, antes de ser jogada no lixo, ou dedicada às cinzas do crematório.

Meu olhar de poeta fixa-se em outro objeto, em busca de decifrar aqueles ideogramas concretos. Mas Rodrigo, o filho eventualmente habitante da caverna de seu pai, me puxa pelas mãos em direção à saída. Precisamos alcançar o carro o mais rápido possível. Estamos desprotegidos da chuva e dos relâmpagos a anunciarem raios. A salvos, partimos em direção à outra caverna, a dos noctívagos e boêmios, para o lançamento de um livro de poesias e reencontro de velhos amigos. Já no bar observo, de longe, o olhar de uma mulher pálida, talvez feia, talvez bela, talvez especial, interessante e frágil, talvez forte, talvez romântica, isolada em uma mesa de canto, a segurar uma sombrinha azul cobalto com pequenas estampas de flores brancas. Nossos olhares se encontram por alguns segundos, mas o meu se desvia para fixar-se no livro de poesias que acabaram de me presentear, cujo título é Beijos da Chuva * e cuja capa representa uma nuvem cinzenta e obesa sobre um quadro de fundo vermelho abrigando o perfil inerte e pontiagudo de uma mulher pálida, talvez bela, talvez especial, mas, certamente, desprotegida do beijo e da chuva. Contudo, uma mulher, sem sombra de dúvida.

*Beijos da Chuva - referência ao livro de José Fernando, editora Cérbero, 2000. Capa de Cláudio Kambé.