ENQUANTO HOUVER AMANHÃ.
ANA MARIA RIBAS

Estou conseguindo atravessar a tríade dia das bruxas, dia de todos os santos e dia de finados. Eu sempre consigo, pela graça de Deus. Faço uma ponte sobre o abismo, e chego do outro lado, com a consciência mais iluminada pela súbita aparição de Deus. Deus sempre me aparece usando alguns de vocês para dar o ar da sua graça. Quando Ele quer me dar a graça inteira, Ele vem sozinho.
 
A cultura religiosa despersonaliza o homem quando institui um dia dedicado a todos os santos e quando pensa que santo é apenas aquele, ou aquela, que após ter algum milagre comprovado, recebe, enfim, a designação de santo.
 
Fico muito feliz em poder  lhes dizer que não é isso o que a Bíblia diz. A Bíblia diz que santos somos todos aqueles que entregamos a nossa vida a Cristo e procuramos viver na linha do tempo, dentro dos padrões cristãos – ontem, hoje e amanhã, enquanto houver amanhã.  
 
 Esse “procurar viver” é um processo de canonização, em vida, e inclui algumas quedas e  ascensões diárias. Quando se trata desse tipo de  “canonização” a santificação não é um  meio pelo qual se atinge o “status quo” , mas é  um fim, no sentido etmológico de fim. Sermos mais semelhantes a Cristo em suas virtudes humanas, enquanto vivemos e nos movemos nesta terra, até o fim, exige uma ampla revisão do conceito de fim. 

Há um fim em cada dia, há um fim em cada decisão, há um fim em cada ação ou reação, há um fim em cada mínimo gesto. Há que se entender e aceitar que a vida é feita de fim,  e se existem meios para o fim, esses são sempre para a finalidade máxima - que naquele momento nos escapa. Que é sempre sutil. Que é simbólica. 

Como todo simbolismo, o fim  é um rito de passagem para um novo começo.
 
 Mas quem são os santos, quem são esses que sem o saber, tomam decisões iluminadas de pôr um fim a tudo que  precisa ser finado e pôr um começo a tudo o que precisa ser começado? Porque todo fim pressupõe um começo. Não há nesse mundo orbicular nenhuma sentença abismal de fim: “nada se perde, tudo se transforma.”
 
 Santos, pois são esses que compreendem o momento de transformar o fim em um novo começo.  O conceito de santo  é mais amplo do que os manuais religiosos nos ensinam. Santo não é apenas aquele que alcança a aura das pessoas iluminadas e responde com enigmas ainda mais profundos aos nossos enigmas mais rasos.  Santo não é apenas  aquele que contempla o céu do alto de uma montanha, sem nenhuma preocupação com a fome que assola o mundo.  Santo não é apenas aquele que se gasta em prol da humanidade, para matar essa mesma fome de pão ou de comunhão. Santo não é apenas aquele que já foi canonizado pela igreja católica e ocupa o seu equivalente arquitetônico nos altares.
 
Quando estive em Barcelona, visitei a Igreja da Sagrada Família, concebida pelo famoso arquiteto catalão Antonio Gaudí. Que foi aquilo, meu Deus! O homem, o santo Gaudi, conseguiu criar na terra a concepção mais pungente do seu céu. Aquela construção mágica, que se quer tocar para ter certeza de que existe,  só pode ser substantificada por quem já teve uma mínima visão do sagrado. Quem não teve, não verá a Igreja da Sagrada Família e nem o santo Antonio Gaudí.  
 
 Santos são todos esses e mais esses: os puros de coração que estão -aqui e agora-  no mundo, quebrando a cara, sem nunca desistir de querer celebrar a Deus com as suas construções verbais, emocionais e conceptuais.
 
A palavra “santificado” quer dizer separado e quem nos separa para ser santo é o próprio Deus. O conceito  mais objetivo de santificação a ser entendido está  nos rituais de sacrifício que eram exigidos do povo judeu no Velho Testamento.
 
 Escolhia-se um cordeiro para ser imolado e o cordeiro era, então, separado dos seus iguais, no momento dessa escolha. Aquele que era separado, instantaneamente, tornava-se diferente.  Depois de se tornar diferente,  seu destino não era mais comum.  

Ser conduzido ao altar para morrer é diferente de estar no pasto para viver. Concordam comigo? 

 Morto o cordeiro, era esfolado, esquartejado e queimado. O fogo que subia do seu corpo,  fazia ascender um perfume  agradável a Deus: um incenso suave.
 
Em que momento o cordeiro passara a ser santo? No momento em que fora separado dos outros cordeiros, no pasto. A partir dessa separação,  cada passo em direção ao templo,  tornava o cordeiro ainda mais santo. A santificação em trote lento, aproximava o animalzinho da morte. Mas ele ia, porque era-lhe dado ir.
 
Quando o cordeiro adentrava no átrio exterior do templo, a morte estava cara a cara com ele. E mesmo que  desejasse fugir, não havia como fugir: morrer  lhe era uma condição inexorável porque ele fôra separado.
 
Uma vez separado do rebanho, a sua vida não lhe pertencia mais. Seu destino era ser morto, esfolado esquartejado e queimado: uma parte alimentava as pessoas  mais próximas, e outra parte subia como incenso suave a Deus.
 
Hoje o conceito de santificação ainda é o mesmo. Santo é aquele que é separado, que não segue a corrente do mundo. Mas isso ainda é pouco, se lhe exige mais. Santo é aquele que anda em direção contrária aos seus sentimentos. 

Porque todo homem anseia por liberdade. Ser livre é a meta e a necessidade básica de cada um de nós. Mas a liberdade humana tropeça na cruz de Cristo. O Cristo  que,  desejando não morrer naquela cruz, ainda assim, deitou-se, estendeu os braços, e morreu. Conformou-se à vontade Maior.
 
Santos são esses – esses que cultivam a consciência da santidade máxima, adquirida  na santificação mínima de cada dia. Mesmo que o conceito de santidade máxima ainda nos escape, perigosamente, pelo vão dos dedos. Nesse sentido, todos os homens são santos. 

Nesse sentido, eu quero saudar a todos nós, no dia de todos os santos.   No calendário cristão  foi ontem,  mas  no meu calendário sempre será ontem,  hoje e  amanhã, enquanto houver amanhã.

*A imagem mostra a Igreja da Sagrada Família em Barcelona. Foto pesquisada no Google.
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 02/11/2008
Reeditado em 08/11/2008
Código do texto: T1261220
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