CRUZ E SOUSA

A CASA DE CRUZ E SOUSA,

NO ENCANTADO, SUBÚRBIO DO RIO

Nelson Marzullo Tangerini

Quando era pequeno, ouvia meus pais dizerem que o nome da Rua Cruz e Sousa, a famosa Rua da Feira do Encantado, era uma homenagem a um poeta negro, simbolista, abolicionista, que muito sofreu, que foi vítima do racismo e que morreu de tuberculose.

Cresci com aquilo aos meus ouvidos, e toda vez que passava ou passeava por aquela rua, vinham à lembrança os versos do poeta. “Vozes veladas, veludosas vozes, / volúpias dos violões, vozes veladas, / vagam nos velhos vórticos veloses, / dos ventos, vivas, vãs, vulcanizadas”. Fui descobrir, depois, após ler toda a sua obra, que também havia uma aliteração em seu nome: Cruz e Sousa.

Minha mãe, a ex-atriz de teatro Dinah Marzullo, ganhou, um dia, no Armarinho da Rua Paraná, divisa entre os bairros suburbanos de Piedade e Encantado, o jornal O PERISCÓPIO, que circulava pelas imediações. Havia nele matéria com foto sobre a casa do poeta Cruz e Sousa.

Fui ao local. Não foi difícil encontrar a casa. Depois, contatei a AMAE, Associação de Moradores e Amigos do Encantado, com o objetivo de tentar transformar o imóvel em Biblioteca Pública ou Centro Cultural.

Escrevi uma carta ao Jornal do Brasil e alertei a todos sobre a existência da casa onde morou o poeta negro.

A partir da publicação da referida missiva, conheci, então, o intelectual, jornalista, escritor e memorialista negro Uelinton Farias Alves, profundo conhecedor da obra do poeta catarinense.

Com ele, aprendi a apreciar e a amar a poesia rara e iluminada de Cruz e Sousa.

A essa altura, também já começara a ler o poeta, incentivado também pelo também poeta negro Jesus do Nascimento Silva. Jesus, um apaixonado pela poesia de Cruz e Sousa, declamava de olhos fechados, na Feira de Livros da Cinelândia, os versos de Antífona e Violões que choram.

Em 1986, a especulação imobiliária colocava em risco o valioso imóvel, que poderia ser riscado da história da cidade e da literatura. Uelinton, a família Cruz e Sousa, um grupo de intelectuais catarinenses, a AMAE e eu tentávamos impedir a demolição da casa.

Ali, o poeta negro recebeu amigos como Nestor Vítor e escreveu, já minado pela tuberculose, o seu “Últimos Sonetos”, livro publicado, posteriormente, na França, por seu amigo Nestor Vítor.

Desesperados, vendo a casa ser destruída lentamente [plagiamos a canção Saudosa Maloca, de Adoniran Barbosa:“Cada “tauba” que caía, dóia no coração”], escrevemos a vários intelectuais, uma vez que os políticos nada faziam para impedir que a casa fosse deletada. Que “autoridade” tombaria a casa de um poeta negro e suburbano?

Apesar do nosso esforço, de nossa ida à Prefeitura, e do apoio da mídia do Rio de Janeiro, São Paulo e Santa Catarina e de pessoas como Affonso Romano de Sant`Anna, Carlos Drummond de Andrade, Maria Julieta Drummond de Andrade e Artur da Távola, entre outros, a casa foi, finalmente, sem a menor sensibilidade, demolida pelo proprietário.

O ilustre itabirano, como sempre, escreveu-nos, apoiando nossa luta:

“Rio, 8 de março, 1986.

Nelson Tangerini:

A reivindicação sobre Cruz e Sousa é muito justa, e merece aplausos gerais. Minha filha não respondeu à sua carta por estar doente, acamada.

O livro de Mário de Andrade intitula-se “Cartas de Mário de Andrade a Manuel Bandeira”, e foi editado pelas Organizações Simões. Mais tarde, saía outra edição, formato de bolso, pela Livros de Ouro ou coisa parecida.

Atenciosamente,

Carlos Drummond.”

Hoje, a casa de Cruz e Sousa está apenas emoldurada na nossa memória e é “apenas uma fotografia na parede”. E também dói. Ela foi parte de sua memória e de sua tragédia. Dali, o simbolista sairia para Sítio, atual cidade de Antônio Carlos, até então um distrito de Barbacena, em Minas Gerais, na tentativa de conseguir crurar-se do mal.

Em Sítio, depois de três dias tilintando, delirando e colocando muito sangue pelo nariz, Cruz e Sousa veio a falecer, na estação ferroviária, uma vez que fora expulso do sanatório, deixando viúva sua esposa Gavita, grávida do quarto filho, e mais três filhos.

Seu corpo foi enviado de volta para o Rio de Janeiro, sem caixão, num trem de carga, e só chegaria à Capital Federal depois de seis dias.

Gavita, que viu o poeta morrer, que acompanhou a decomposição do corpo do marido enquanto olhava a paisagem de Minas Gerais e que perdeu três filhos, todos tuberculosos, acabou por enlouquecer e, também, morrer.

Ainda teve tempo de dar a luz a João da Cruz e Sousa Jr., que faleceu aos 17 anos, de tuberculose, deixando um filho, Sílvio Cruz e Sousa, que daria continuidade a uma vasta família.

É uma história trágica, sim. Ela me comoveu. A luta para salvar a Casa de Cruz e Sousa da demolição foi e é o momento de maior luz em minha vida.

Nelson Marzullo Tangerini, 53 anos, é escritor, jornalista, poeta, compositor, fotógrafo e professor de Língua Portuguesa e Literatura. É membro do Clube dos Escritores Piracicaba [ clube.escritores@uol.com.br ], onde ocupa a Cadeira 073 – Nestor Tangerini.

nmtangerini@gmail.com, nmtangerini@yahoo.com.br

Nelson Marzullo Tangerini
Enviado por Nelson Marzullo Tangerini em 05/11/2008
Código do texto: T1267047