EM ALGUM LUGAR.
ANA MARIA RIBAS. 

Liberdade de expressão: não tenho muita, nem mesmo quando escrevo. E agora que tomei consciência dessa situação, escrevo sob protesto, porque gostaria de conquistar essa liberdade. Gostaria de fugir do estereótipo que  construí em torno de mim.  Meu compromisso com a infalibilidade é cruel e com a imagem é atroz. Às vezes, sinto-me como um cão adestrado a quem se diz: “faça isso, ou faça aquilo.” E ele faz e eu também faço. Com a diferença de que a adestradora sou eu mesma. No rastro desse compromisso comigo mesmo, seguem-se os vínculos que adquiri ao longo da vida: como saber jamais se algo que escrevo afrontará as dignidades constituídas?
 
E, numa escala de valores ainda maior: como saber se o que escrevo não afronta a Deus? Porque no ato de escrever nos percebemos mais poderosos do que realmente somos nesta vida. Dominar as palavras, num certo sentido é brincar de onipotência. Deus criou o mundo pela palavra e fez dele uma coisa linda. E eu? O que eu estou criando com a palavra? Isso eu temo e temo muitíssimo. 

Porque o criador é sempre aquele a quem se remete a autoria. Mas na verdade, na verdade, nem tudo o que criamos é exclusivamente nosso. O que criamos é metade nosso, e metade do outro, dos outros, do mundo que interage com todos os campos da nossa existência.
 
Às vezes eu me sento aqui e quero falar de flores, mas a manchete do UOL rouba-me o cheiro das flores, o sentido das flores, o sentimento das flores. Então, falo de dores. Mas isso é muito poético. Real é dizer que, muitas vezes, eu me curvo ao poder constituido, eu me vendo à caravana dos vencedores e integro o cortejo dos vencidos. Isso eu lamento e lamento muitíssimo.
 
O que sei escrever de melhor são cartas. Porque cartas são pessoais tanto na saida, quanto  no destino.  Nas cartas e e-mails eu libero a minha porção engraçada,  e as minhas reflexões menos convencionais. Gosto de imaginar as pessoas rindo com o que escrevi. Eu mesma consigo rir do que escrevo.  Mas mesmo as cartas, e-mails, artigos, crônicas, mensagens, enfim tudo o que libero  me são um tormento: depois que envio, quero trazê-los de volta.
 
 Durante 20 anos mantive correspondência com um primo-irmão do meu pai, residente na Espanha. Pelo correio. Desde menina, eu me encarregava disso, porque ele havia residido conosco, durante alguns anos, aqui no Brasil, e eu tinha as melhores lembranças da minha infância associadas à sua memória. Era um pai: um pai sem cobranças.    As cartas que trocamos têm o selo das coisas finas. O que quero dizer com “coisas finas”? Acho que quero dizer assim: “coisas maravilhosas”. Mas o ciclo se  encerrou, de forma melancólica,  em novembro do ano passado.
 
Quando soube que estava com CA de próstata, ele não me comunicou, continuou escrevendo normalmente. E ainda  teve o cuidado de deixar uma carta  para ser postada depois da sua morte.
 
Foi-me um choque, mas no meio desse choque,  eu vi algo tão delicado que não sei expressar o que vi. As últimas palavras que ele escreveu foram essas: “Não seja excessivamente melancólica, viva a  vida de maneira simples, porque a vida é simples.  Teu primo que te ama para além desta vida: Santiago.”
 
Essa carta,  como era de se esperar, alcançou o efeito oposto ao que ele pretendia. Penso que ele quis banalizar a morte mas glamourizou demais essa banalização. Deu-me um passaporte ao alcance da mão,  para o  mergulho mais fundo. Quando quero mergulhar, pego a carta, tranco a porta do quarto,  e mergulho. Sem avião. 
  
Nem sempre posso ser tão franca quanto gostaria. E nem sempre encontro pessoas tão abertas para me entender- e eu a elas.  Nem sempre posso ser tão espontânea. Nem sempre posso me dar ao desfrute de ser  inconsequente, sem o rótulo da inconsequência. Nem sempre consigo fazer o palhacinho da festa sem assustar as criancinhas.  
 
Quando escrevemos, inspiramos um estilo; da mesma forma que, quando vivemos, também inspiramos um estilo. Não se pode trair o estilo que inspiramos a vida toda, ou o tempo todo, mesmo que esse tempo seja um ano de R.L. Aprendi isso.
 
Um colega de RL  sentiu-se afrontado porque, como cristã, eu não poderia ter criado esta frase: “ aos insensíveis eu não perdôo jamais.” Ele leu todo o texto e comentou só a frase. E bateu forte. Apanhei e fiquei quieta. Ou melhor, corrigindo: apanhei, fui lá e dei a outra face para ele bater. Disse que sim, que ele estava certo e que eu iria mudar o final.
 
 Na verdade, era um final necessário ao texto, arte cênica total flex.  Mas não era necessariamente o meu final: o final que estava escrito dentro de mim.
 
Eu lá tenho condição de  não perdoar alguém? Eu lá tenho prerrogativas para ser tão poderosa? Eu lá tenho coração para ficar abrigando a mágoa? Três perguntas para uma só resposta diante de Deus: “ não.”
 
 E quem seria afinal esse “alguém” sobre o qual eu escrevi com tanta veemência literária? Nem me lembrava mais. Não me lembrava mais nem mesmo do nome da pessoa cuja insensibilidade  “magoara-me tanto”, e nem de ter escrito aquilo.  Quando li o comentário, pensei: “oxente, tá doido!!! Isso não é comigo!!!”
 
 Mas era!  A nuvem andara e quando a nuvem anda, eu esqueço o que ficou para trás e ando com ela. Precisa ser algo muito grave para me prender com grilhões. Algo que me machuque muitíssimo. E aquilo não era.  
 
Fiquei de dar um final menos trágico à crônica, mas a vida andou e  acabei esquecendo. Passaram-se dias de dias. E, quando eu menos espero,  lá vem outra pancada. Dessa vez a pancada foi eclesiástica: Frei Fernando, meu amigo e meu leitor, ensinou-me novamente a mesma lição, com autoridade apostólica. 

Novamente, alguém tropeçara na última frase do meu texto.  Dessa vez, não esperei pela terceira. Fui lá e transcrevi o final que me encomendaram. Não sem antes dizer o nome do autor.
 
Por causa dessas coisas, eu tenho tentado conseguir mais uma escrivaninha aqui no RL, mas talvez,  porque usei o mesmo CPF, não me deram uma nova escrivaninha. Não,  até agora. Se me derem, ninguém saberá quem sou. Não terei sexo, nem rosto, nem perfil, nem história pregressa. Só terei novas histórias. Farei das velhas, e das novas histórias um nova interpretação de vida, inspirada em Rosa Montero. Que inveja me dá Rosa Montero, Rosa com a sua liberdade revolucionária de expor sem se expor, mesclando a realidade com a fantasia, sem ter que explicar: “aqui sou eu, aqui é  a fantasia, a louca da casa.”   
 
 Eu tenho dois caminhos: ou espero até os 80 anos para escrever a vida como ela é, ou uso um outro nome que não lembre o meu nome, que não me traga nenhum outro dever, a não ser o prazer puro e simples de contar histórias. A história não como pensamos que ela deveria ser, mas como  geralmente é.
 
Afinal, cinco perguntinhas básicas, tiradas do Livros dos Livros: 1) Pedro cortou a orelha do servo;  ou não? 2) Jesus expulsou os vendilhões do tempo; ou não? 3) Paulo chamou Pedro de dissimulado; ou não? 4) João Batista xingou todo mundo de raças de víboras;  ou não? 5) Jesus disse a Pedro: "para trás de mim, Satanás";  ou não?
 
Se as respostas forem “não” a minha Bíblia tem páginas a mais. Mas se as respostas forem “sim” eu me curvei demais. E tenho me curvado demais em busca da perfeição que não tenho. Que não sou. Que jamais serei.
 
Perdoar é muito mais do que estender a mão, muito mais do que escrever cinco palavras, muito mais do que direcionar um final feliz e camuflar o que estamos sentindo, no momento em que a narração ganha forma.   
 
Perdoar é esquecer. Esquecer é algo que acontece no recôndito da alma.
 
Nesse sentido, Jesus em mim, é como uma grande borracha que apaga todas as mágoas. E se não fosse assim, adiantaria eu reescrever o final daquilo que escrevi? E sendo assim, faz muita diferença este ou aquele final para as minhas  histórias?
 
 Em algum lugar, as perguntas, um dia,  se transformarão em respostas.  Enfim...!!!