NINGUÉM SEGURA UM COMETA PELO RABO. 
ANA MARIA RIBAS BERNARDELLI.
 
Às vezes, eu me pergunto sobre rótulos. Os rótulos que o mundo nos adiciona como parte dos ingredientes que lhes oferecemos. Nem sempre o rótulo é a essência exata do que o frasco contém, ou do que um pacote oferece.  Se eu mostro farinha de trigo, ovos, leite e açúcar, alguém pode dizer: “ aqui estão os ingredientes para se fazer um pão” sem jamais ter certeza se dali sairei com  um bolo. Tudo e nada depende da maneira como os ingredientes são acrescentados, tudo e nada depende da quantidade de cada elemento, tudo e nada depende das imprecisões das intenções, dessas que se volatizam e mudam a cada momento, como os ingredientes sob a pia da cozinha,  e a posição dos astros no céu.
 
Cozinheiros somos todos os dias, astrônomos, só à noite, quando olhamos para a vastidão do infinito; alquimistas, só nos finais de semana;  interpretadores de mistérios, sempre.   Mesmo que a estrela mais próxima de nós, demore 300 anos para nos trazer a sua luz, podemos arriscar dizer todos os dias: “acabou de chegar aqui o brilho de 300 anos atrás.” Mas em que dia esse brilho foi liberado, não sabemos. Muito provavelmente quando Luiz XIV estava no poder. Essa proposição não estraga o brilho da estrela, mas macula a  composição poética. Corrompe a  poesia.  Fere os  brios.
 
 -Como ousas óh  estrela, contrariar a minha poesia?  Óh céus, oh terra, óh mar, não sois dignos dos meus versos! Que queres que eu vos faça? Parar de versejar?”  
 
 Mas mesmo os cozinheiros, podem ter a sua comida estragada por um acréscimo de intenções no sal, e mesmo os astronônomos não conseguem conter o caminho dos astros no céu, e mesmo os alquimistas não podem tirar apenas ouro das suas poções extraordinárias, e mesmo os interpretadores de mistérios não os interpretam com a ciência das exatidões matemáticas. Tudo é vasto, tudo é amplo, tudo é indefinido e esse "tudo"  resume-se nisso: nenhum homem pode ser adequadamente interpretado nem pelo que ele fala, nem pelo que ele escreve,  e nem mesmo pelo que ele faz.
 
 Dentro do objetivismo do muito fazer há o mistério indefinido  que apenas se vislumbra, ainda que, por instantes, esse mistério pareça brilhante como a cauda de um cometa e se ofereça à contemplação de todos os mortais. No instante seguinte, já foi, já era, mergulhou na imensidão, porque essa era a sua missão: passar, brilhar, encantar e prosseguir sem revelação.   
 
Da mesma forma como ninguém consegue segurar um cometa pelo rabo, ninguém segura o mistério que um homem contém, ninguém alcança o seu mundo mais interior, onde reinam ele e a sua fantasia, onde reinam ele e os seus afetos sagrados e profanos, onde reinam ele com os seus anjos e com os seus demônios.
 
Eu olho para a cabeça de uma pessoa e tento fixar com um prego aquele mínimo pensar que lhe passa, enquanto ela também olha para mim. E devo lhes dizer, para o vosso temor, que, às vezes, consigo. Trago lá de dentro aquele pensamento mais secreto e o exibo bem diante dos meus olhos, como uma jóia rara. Fico comovida quando me deparo com jóias raras e tenho com elas o máximo cuidado do colecionador. Contudo, na captura desse pensamento raríssimo,  algo me acontece:  ao mesmo tempo em que o tenho nas mãos, cintilante como jóia rara, procuro esconder que consegui, para não provocar no meu interlocutor o mais breve constrangimento. Sempre tenho esse cuidado.  Mas quem se constrange sou eu, ao constatar que aquele pensamento que arranquei a fórceps lá de dentro, já não é mais o pensamento que habita o santuário.  Outros já ocuparam o instante seguinte, e nesses eu  não consigo tocar. O que toquei, toquei. O outro, o que vem em seguida,  não toco mais: não com a frequência com que gostaria, não com a previsibilidade que me convinha para poder pensar: sou uma mulher que tenho a fórmula exata para enxergar todos os dias a nudez do rei, como o menino do conto de Andersen.  
 
Não há reis nús, há reis em trajes sumários, mas eles se escondem por trás dos muros de seus castelos. Nesta manhã, eu não tenho nenhuma vontade de escalar muros de castelos.  Nesta manhã,  desisto de ser interpretadora dos mistérios de todas as gentes,  desisto de ser alquimista, desisto de ser astrônoma, e escolho ser cozinheira.
 
 Nesta manhã de panelas, vou fazer o meu almoço. Só nesta manhã. Mas porque o mundo é orbicular e vasto,  e o infinito não consegue me conter eu volto.
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 09/11/2008
Código do texto: T1273925
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