A GENTE É OU NÃO É. 
ANA MARIA RIBAS.
 
A viagem começara em São Paulo, e deveria estender-se por alguns dias. Israel é um país melhor compreendido quando se está em companhia de um pregador do Evangelho, com um bom conhecimento teológico e o completo domínio da geografia bíblica. Esse que nos acompanhava, tinha tudo isso e mais isso:  uma boa familiaridade com a Palavra de Deus, uma cerebração rápida, e uma fluência verbal que surfa em águas cristalinas,  dessas que, quanto mais se ouve,  mais se pede para ouvir.  
 
 Todo pregador que deseja falar às massas precisa ter o domínio desses “idiomas”: teologia, conhecimento bíblico, cultura geral e atualidades. Se juntarmos a isso algumas técnicas simples de psicologia, o êxito da missão está garantido. Presumindo-se que a missão seja impressionar e fazer adeptos. Mas dessas coisas eu ainda não entendia. Eu só entendia de sede e queria matar a sede não em Nova York,  não em Miami, mas no mar da Galiléia, onde existe muita água. 
 
 O itinerário nos levaria a reconstruir o caminho de Jesus na terra e algumas incursões do apóstolo Paulo pela Ásia. A comitiva era de aproximadamente 280 pessoas e o vôo da companhia X  estava praticamente  ocupado por esse povo todo.
 
Isso posto presumo que seja interessante inserir aqui uma pesquisa ao dicionário. Ídolo: Figura representativa de uma divindade; pessoa a quem se presta demasiado respeito ou excessivo afeto. Idolatrar: amar excessivamente; venerar extraordinariamente.
 
 O ídolo já estava conosco e o seu trono tinha algo do Rei Davi. O Rei Davi viajou na primeira classe, como convém à realeza,  e desembarcou em Israel, tendo à sua disposição um carro blindado do governo israelense, com batedores à frente. Nós, a comitiva de discípulos  o seguíamos, obedientes como colegiais, ligeiramente assustados com o aparato policial que houve no desembarque, e com as rígidas instruções que recebemos sobre como deveríamos nos comportar.
 
Seguimos a comitiva do rei logo atrás, em dois ou três ônibus, usufruindo de uma proteção que, naquele época se fazia ainda mais necessária. A coisa por lá fervia.
 
Com o decorrer dos dias eu percebi que esse homem, involuntariamente, tinha também algo de Salomão. Salomão com as suas 2.000 esposas, todas evangélicas, todas carregando a Bíblia, todas absolutamente fascinadas pela aura de santidade que o envolvia.  E a “culpa” não era dele. Alguns adjetivos podiam ser aplicados à sua conduta, até ali irrepreensível: homem de Deus, servo de Deus, evangelista, profundo conhecedor da Palavra de Deus, autêntico adorador de Yavhé.
 
Tudo isso, e mais isso: ele  viajava com  a sua única esposa, mas aquelas outras  1.999 pareciam não se dar conta de que para um homem de Deus,  uma mulher basta.
 
Para um homem de Deus,  as outras 1.999 seriam dispensáveis até mesmo na hora de  disputar um lugar à mesa, no café da manhã, no almoço e no jantar. E mais dispensáveis, ainda, quando a presença se estendia para além do café, para além do almoço, para além do jantar,  e incursionava pelo campo da tietagem explícita, das fotos, dos autógrafos, todas querendo levar para casa a prova viva: "fui com ele a Jerusalém.   E falei com ele. E ele falou comigo. E ele gosta disso. E ele não gosta daquilo. E eu também gosto disso. E eu também não gosto daquilo".  A concordância e a empatia, nessas horas,  sempre são imediatas. Se não são, tornam-se.
 
Na ocasião, custei um pouco para compreender o que estava acontecendo. Porque nada estava contecendo e ninguém sequer presumia que estivesse prestes a acontecer.  Só depois tive certeza de que aquilo que, na época, eu não soubera traduzir em reflexões, e nem deveria traduzí-las, eram, na verdade,  antevisões do futuro.
 
Diga-se de passagem: não sou visionária e nem profeta. Não no sentido de predizer o futuro. Mas quando algo perfuma, perfuma. Quando algo cheira, cheira. E quando algo fede, começa fedendo aos poucos, e às vezes, a gente só percebe  quando o ambiente já se empestiou todo.
 
Nessas horas, é muito útil pertencer à turma do fundão. Aquela turma que comanda a bagunça, que renuncia ao primeiro lugar na sala de aula, exatamente para  ver além do que é conveniente ao professor, que o aluno veja. Eu sempre fui da turma do fundão.  Formamos, pois, a turma do fundão,  como sempre se forma, de maneira natural. Ninguém nos convida para ser do fundão: a gente é ou não é.
 
 Com a turma do fundão fiquei livre dos banquetes, mas não fiquei livre da comida; fiquei livre das homenagens, mas não deixei de ser homenageada; fiquei livre de receber o diploma de peregrino em Israel, mas ele está comigo aqui em casa;  fiquei livre de engrossar o cordão que cada vez aumenta mais, e fui conhecer Israel como qualquer mortal. Correndo o sério risco de voltar mortalmente morta.
 
Mas não me arrependo. Vi em Israel tudo o que queria ver, para não ter que dizer: “tenho que retornar.” Não tenho mais nada.
 
Contudo, quando se vê demais, corre-se o risco de ver além do necessário.  Vi então:  vi que a única mulher que pertencia àquele homem de Deus,  aquela que lhe fora dada por Deus, tinha uma melancolia crônica causada por esse festejar excessivo do mulherio em cima do marido: que ainda era o dela. Mas quem se importava com isso? Quem se importa com isso quando o ídolo domina o verbo, e do verbo fez-se o mundo, e além do mundo, também se fez todas as idéias completas, redondas e acabadas que o cérebro feminino precisa para as funções hormonais dizerem em total “des-hormonia”: “que homem, meu Deus!!!”
 
Nessas horas, Deus e o homem não se excluem, mas também não fazem uma boa parceria. Não, com a Bíblia na mão, e os hormônios em ebulição.
 
 Vou me eximir de comentar o final, até porque o final só aconteceu propriamente, alguns meses depois, e eu não vi. Até porque, também,  não é meu objetivo falar de finais, mas de meios que evitem certos finais. Que não necessariamente precisam ser captados no final da vida, pode ser até  bem no começo. Melhor se forem no começo.
 
Eu teria, se muito, uns 10 anos de idade quando um missionário capuchinho, em trabalho de missões, hospedou-se na casa dos meus pais, no pequeno povoado em que morávamos, fazendo da nossa casa um lugar de sussurros. 

A gritaria habitual deu lugar a um estranho silêncio, uma vez que a casa era de madeira, as paredes eram finas, e todo o mundo queria impressionar o padre com  bons modos.
 
 Que não tínhamos, essa é que era a verdade. Eu, inclusive, com os meus 10 anos de idade, nada sabia de como se devia viver em suavidade. Eu vivia como um cabrito: pulando e falando. Cabrito fala? Lógico que fala.  
 
  E foi assim falando como uma cabrita,  que  naquela noite, bem na hora do jantar, preparei uma frase para dizer em algum momento que pensei estratégico, e que, de novo, nem me lembro qual foi.  E a frase que escolhi foi esta:  “ Mãe, devagar com o andor que o santo é de barro.”
 
Na hora todos os olhares se voltaram furibundos contra mim. Sou 8 anos mais nova do que o mais novo dos meus irmãos, todos assentados à mesa, mal respirando, mal comendo, mal deglutindo o procolo que lhes fora ensinado, e a santidade que lhes fora, subitamente requerida.  E que eu quebrara.  Fui duramente reprimida pela minha mãe por dizer uma frase daquela, bem na orelha do padre. E lá fora, no escuro da noite, meu irmão me deu uns pescoções, como se dizia em bom espanhol.  E eu que só queria entender porque  não podia dizer “devagar com o andor que o santo é de barro” -se eu havia guardado essa traçada exatamente para aquela hora, para impressionar o padre com o meu verbo-  fui dormir chorando:  já era besta aos 10 anos de idade.
 
Ninguém explicou-me porquê:  cansados estavam, todos, das minhas perguntas.  Mas como é natural, algum tempo depois, aprendi as sutilezas que envolvem os relacionamentos humanos e eclesiásticos.
 
O que muito me serviu naquela viagem para evitar que eu subisse ao palco e declamasse o verbo, na hora imprópria. Mas vontade não me faltou.   Dessa vez, não era mais pelo não domínio das sutilezas que a frase me vinha: era exatamente por dominá-la em toda a sua extensão e profundidade.  Eu tinha vontade de pegar o microfone e dizer: “mulheres de Jerusalém e do Brasil,   devagar com o andor que o santo é de barro.  E tem dona!”
 
 Contudo,  não se leva uma bordoada à toa na vida. Levei uns pescoções do meu irmão para aprender que não se pode dizer diante dos santos de barro: “devagar com o andor que o santo é de barro.” E aprendi. Não se pode dizer impunemente o que causa indignação, mesmo que leve à reflexão.
 
Primeira reflexão: se os santos NÃO SÃO de barro, eles não deveriam ser carregados, deveriam locomover-se sozinhos. Segunda reflexão: se os santos SÃO de barro, eles não deveriam ser festejados como se  NÃO fossem. Em ambos os casos, aventar a possibilidade de que um santo de barro possa quebrar-se, seria a mesma coisa que negar a sua divindade.
 
Assim não se deve dizer jamais “devagar com o andor que o santo é de barro?”
 
 E como todos ali eram adultos, nada se disse, e  o santo se quebrou. Quebrou-se e  fez-se de novo. E fez-se de novo por um único motivo: porque o nosso Deus é um Deus que não desperdiça o material que lhe pertence.  Só por isso.
 
 Mas quem ajudou o santo a despencar do andor,  foi a turma da linha de frente – uma mão na Bíblia, e outra no andor. De onde se conclui que Bíblia fechada não é garantia de nada. Bíblia no papel, também não. A Bíblia tem que estar escrita por dentro do peito, nas tábuas do coração,  e se não estiver por dentro, não faz diferença alguma estar por fora. "TUDO ME É LÍCITO, MAS NEM TUDO ME CONVÉM."
 
Nem sempre é um bom negócio estar na linha de frente. Às vezes, a turma do fundão se diverte mais, aprende mais e não se torna co-participante dos pecados dos outros.
 
Que cada um de nós já tem  um caminhão dos seus.

*A imagem mostra parte da turma do fundão, após o almoço, no Vale do Megido.  
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 11/11/2008
Reeditado em 11/11/2008
Código do texto: T1277325
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