Hoje é dia de pedreiro.
 
Este é o tipo de título que não vai atrair muitas pessoas: só dois tipos de pessoas – as que se interessam por pedras e as que constroem altares.

Mas isso  vale para quem elaborar uma reflexão.  Só que hoje é sexta feira e nos escritórios, nas empresas, nas escolas, ninguém está a fim de fazer reflexões elaboradas.  O povo quer algo leve, para finalizar o expediente, para dar uma lambida nos olhos, enquanto engana o chefe até a hora de voltar correndo para casa. Eu sempre me pergunto, a quantas andará o R.L. na lista dos sites que ajudam a diminuir o cansaço do fim de uma jornada. E eu sempre me respondo: é um site bem cotado. As sábados e domingos, o povo tem coisa melhor a fazer. Qualquer dia, escreverei algo especial para vocês trabalhadores do Brasil. E escreverei no meio da semana, quando o calendário enrosca e o relógio para.
 
Mas hoje não. Hoje eu tenho algo mais difícil para fazer: renunciar ao meu brinquedo favorito e carregar pedras.
 
 Descobri aqui no RL a minha vocação para repentista. Que coisa! Não sei quantos de vocês já tiveram o prazer de versejar em repentismo. É very arrebatador! Também não sei quantos de vocês já duelaram em prosa. É very extasiante. E como isso é revelador para mim que, normalmente, sou uma mosquinha morta, dessas que não fazem mal a ninguém. Em casa, sou feita de amores, canduras e doçuras insuspeitáveis. Que só os de casa conhecem.  Ao vivo, sou doce como o mel.  Contudo, quando alguém me chama para um duelo de palavras, eu fico numa excitação que me deixa completamente à mercê da criança com distúrbio de conduta que habita em mim. Eu fico sem noção de limites. Eu viro uma menina hiperativa a caminho de uma sessão de circo mambembe. Quando o palhaço entra em cena, e diz: “respeitável público!!!” eu quero entrar no picadeiro. Quando o leão mostra os dentes, eu quero passar a mão na juba. Quando o trapezista se apresenta, eu quero subir na corda. Quando o elefante levanta um pezinho, eu quero morrer de tanto me enternecer com aquele montão de ternura cinzenta e sem graça.   Eu fico essa. Comendo pipoca.
 
Mas eu, que já vinha de várias funções circenses no decorrer da semana, recebi vários toques de anjos.Obrigada aos meus amigos anjos: anjos querendo me levar para casa. Querendo me acalmar. Querendo me botar para dormir. E eu, que nada! Até que ontem, pela boca de Balaão, o próprio Deus me fez ver que o mundo é um circo pegando fogo com pimenta,  mas nem por isso eu tenho que ser a tocha que coloca mais fogo no circo. Então, obedeci. Desde ontem, estou assim: obedecida.
 
Quando tal me ocorre, ser repreendida por Deus, usando instrumentos que eu jamais suspeitaria serem mensageiros de Deus, imediatamente eu ligo para a pastora Wilma, para ser mais repreendida. Eu gosto quando Deus me repreende, me põe limites.  Eu gosto. Então, liguei para a pastora Wilma por volta das 18 horas, mas ela estava em outra ligação, com um povo da Inglaterra. Pastora Wilma é international. Mas com um telefone numa mão e o outro telefone na outra, ela me disse: “Ana me ligue por volta de 23 horas.
 
HUM: Trem das onze! Eu já sabia que o trem das onze é o último trem que leva a gente de volta para a casa. Que coisa: aqui nem tem trem. Mas tem.
 
Então comecei a me preparar para pegar o trem. Porque funciona assim: quando  Deus vai falar comigo, algumas horas antes, eu me recolho toda. Eu me recolho toda como o aluno que infringiu as regras da escola. Como o filho que amassou o carro do pai. Como o gato que matou o passarinho na gaiola. Eu me recolho toda como o último passarinho que ficou vivo depois da passagem do gato: o coração aos pulos, bum, bum, bum. Eu temo mais a Deus do que tudo. E eu temo porque sei que na função de brincar eu me brinquei excessivamente, e porque sei que na função de viver eu só posso respirar. E pausadamente.
 
Deitei-me então, e fiquei olhando para o teto, mal vivendo, mal pensando, mal respirando, mal existindo, e ainda assim toda acesa, toda acordada, toda consciente de que Deus existe e me vê e  23 horas.
 
Fui eu quem liguei para Wilma. E quando ela disse: “alô!”  tornei-me mais dócil do que um cordeiro a caminho do abatedouro. Que ser sou eu, capaz de tantas metamorfoses ambulantes! Que ser irreconhecível sou eu que nem mesmo sei quem sou! 
 
- Pastora Wilma, eu quero carregar a sua mala. Você me deixa? – Já comecei assim, para dizer a que vim.
 
Sempre tive vontade de grudar na pastora Wilma na busca de uma alquimia que passasse a santidade dela para mim. Por osmose.  Eliseu não grudou em Elias? E Eliseu não superou Elias? Pois então: eu quero grudar na pastora Wilma e quero ficar só do tamanho dela. Nem precisa ser maior. Nem precisa.
 
Mas a pastora Wilma não se impressiona com arroubos de humildade. Ela só me diz assim:
 
- “ vamos orar Ana Maria, curve a sua cabeça agora.”
 
Algum vivente do lado de lá do Equador sabe o que significa : “ curve a sua cabeça, agora?” Significa que quando a oração começou eu estava de joelhos sobre e cama, e quando terminou, eu estava de quatro no chão. E nem sei como caí. Só isso.
 
O que Deus me falou é segredo de rei e nem morta vou contar. Mas ele viu tudo! Ele sabe tudo! Ele mede tudo. Ele pesa tudo! Ele tem uma balança com precisão milimétrica. E ele julga tudo!
 
O azar é que Deus também perdoa tudo. Às vezes, a gente acha que Deus perdoa demais. Quando nós somos o de menos. Mas Deus é um Deus que perdoa, quando qualquer pecador se arrepende. A condição é o arrependimento.
 
Eu sempre me arrependo: vivo arrependida. Viver arrependida é a minha condição de existir. Só que aí, começo a querer me justificar e descubro que  Deus não dá muita bola para as minhas justificativas. Deus é como a pastora Wilma: não se impressiona com conversa fiada. Deus é um Deus que nos justifica mas ele não recebe as nossas justificativas. Interessante esse aspecto do caráter de Deus. Ouça esse diálogo, esse diálogo vai encerrar este texto:
 
- “ Deus, o Senhor sabe há quanto tempo jogam-me pedras, sem que eu sequer suspeitasse? Há 8 meses, Deus!
- Não "há 8 meses", mas desde que você nasceu. Contudo, quantas pedras lhe atingiram até agora?
- Eita Deus! É verdade: nenhuma. – Já fui me entusiasmando.
- Pois então. Nenhuma pedra lhe atingiu e nem vai lhe atingir porque quem desvia as pedras do seu caminho sou eu. Agora, com as pedras que lhe jogaram, construa um altar. Ele vai se chamar “Altar ao Deus Conhecido.”
- Como o altar ao “Deus Desconhecido” que existe na Grécia?
- Isso! Como o altar ao Deus desconhecido que existe na Grécia.

- E o que eu faço com as pedras que ainda me jogarão?

- Aumente a altura do altar. Vá edificando pedra sob pedra porque você foi chamada para edificar altares e não para ser moleque de rua atirando pedras nas pessoas que estão apenas passando.

- Mas Deus, jogaram antes em mim. Mas Deus, só mais um pouquinho: faltou dizer isso, faltou dizer aquilo, faltou dizer aquilo outro.
- Pssiuuu. Calada!
 
Nesta manhã de altares, levantei pois sem pernas. Os braços estão comigo. Com eles eu abraço quem eu quiser. Ou melhor, eu abraço quem Deus quiser abraçar.   E hoje, Deus quer abraçar o mundo com os meus braços, com as minhas pernas, e com todo o meu ser. Deus quer abraçar o mundo de forma amplificada. Deus quer abraçar a terra desordenada com a acalmia do céu que não se agita. Que parece estar imóvel, mas apenas parece. O céu está em atividade laboriosa com um nexo causal que irrita as pessoas sem noção de nexo. E de plexo. E de amplexos.   
 
Com a súbita compreensão celestial que me tocou, com a mansa  suavidade que me invadiu, com o melhor do meu ser que sufoca, esgana e mata nesta  nesta hora o pior do meu ser, eu vou trabalhar na construção do seu altar.

Porque sou obediente. E porque hoje é dia de pedreiro.
 
 
* A imagem mostra as minhas mãos tocando o altar "Ao Deus Desconhecido" no aerópago, que se localiza na Acrópole de Atenas, na Grécia. ( existem outras Acrópoles).
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 14/11/2008
Reeditado em 14/11/2008
Código do texto: T1282733
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