Crônicas de esquina 14 ( Ao amigo Sérgio Rosa)

AO AMIGO SÉRGIO ROSA

Traz um Undemberg!

Braço erguido, a voz do amigo soa alto e forte. O bar se volta como se alguma heresia tivesse sido proferida do alto dos seus telhados. No rosto do amigo, nenhum sinal. Nada lhe vinca a não ser os sulcos trabalhados pela mão do tempo, esse arquiteto de traços arrojados. A demora exige reprimenda:

Ô, Augustinho, cadê o Undemberg?

O gajo lhe sorri, mas obedece. As garrafas de cervejas sob a mesa não são poucas. No entanto, a vaga lembrança de uma recomendação do Jaguar torna o drinque absolutamente imprescindível. Jaguar é o nosso Pablo Neruda tropical. Em seu “ Confesso que bebi”, ressalta o espírito etílico carioca e nos substitui a confortável cadeira da sala de estar por tonéis de carvalho improvisados.

A droga chega à mesa. É recebida como se acolhe a um amigo: braços abertos e sorriso farto. Luciano ri com ar de repugnância, insistindo na tese de que a bebida tem gosto de remédio. O cronista, apreciador da beberagem bodegueira, atesta sua importância antibiótica e aprova. Mas o amigo, alheios aos comentários, apenas bebe. Ou finge.

A conversa se desenrola – às vezes se enrola – sem dar importância a nexos mais exigentes. É que o álcool se apega às palavras e as deixa assim, bordejando em atmosfera própria, audíveis apenas a ouvidos não menos trôpegos.

Nessas idas e vindas de desencontros não menos vário, o amigo ergue o dedo e – silêncio – declara desejar um realejo, como se algum sonho distante lhe faltasse. Passado o susto, a mesa ri satisfeita. Adriana, entre solidária e zombeteira, sai em defesa do consorte:

Quem nunca teve um sonho para se sonhar eternamente?

Mas o amigo fala sério. Deseja comprar um realejo para enfeitar a vida. Talvez algum gosto raro da infância lhe tenha reconstruído a imagem do periquito retirando-lhe a sorte. Quem sabe um perfume distante, evocado por uma lembrança fugidia que se atualiza, lhe tenha impregnado as narinas? Não as suas, mas a do menino passeando pelas ruas do Engenho de Dentro? Naquele momento, só um realejo. A música do Chico se apresenta, mas a letra é confundida por conta de tudo.

Luciano ensaia um samba e retornamos à realidade do bar. O realejo se esconde em algum canto escuro da memória. Ficaremos assim nesse Domingo de chuva: cantando samba, bebendo cerveja e sonhando – escondidos – com um realejo que nos restitua o tempo em que o mundo se resumia ao velho bairro, suas ruas e praças. Tempo em que, embalados pelas mãos firmes de um velho pai, o menino se encantava com um simples passeio pela feira de Domingo no Engenho de Dentro. Não é, Sërgio?

Aldo Guerra

Vila Isabel, RJ.

Aldo Guerra
Enviado por Aldo Guerra em 26/03/2006
Código do texto: T129029