Hoje não gostaria de recorrer a preâmbulos para descrever o que estou sentindo. Mas será que conseguirei  livrar-me dos preâmbulos? O preâmbulo seria um ou dois parágrafos descrevendo o  universo de Carl Seagan em permanente estado de expansão e mudança, mas se quero falar de seres humanos, e não de constelações e galáxias, por que haveria de buscar no universo uma metáfora a ser entendida?
 
Não há nada mais palpável e mais concreto para o ser humano do que os seres humanos. Eles estão aí, ao alcance da nossa (in)compreensão a cada dia, estão disponíveis ao exercício de nossas comprovações mais íntimas e mais esclarecedoras, acerca de nós mesmos, desde a  mais sublime fraternidade, à  mais vil humanidade. Todos os dias podemos conferir a quantas anda o nosso processo de evolução, apenas observando – sem microscópio e sem telescópio.  Olhando. Apenas vendo, de pertinho, de juntinho, de coladinho,   numa espécie de arco voltáico que se tenta realizar entre dois automóveis e que não costuma dar muito certo, mas pelo menos serve para aprender algo sobre mecânica. Não quântica.
 
 Nem todo aprendizado ocorre com experiências bem sucedidas. As experiências mal sucedidas são as que mais nos ensinam a não esquecer.  Experiências que são totalmente esquecidas não propiciam a aprendizagem. Há que se ficar na metade ideal entre “não sei se caminho a segunda milha com essa pessoa, ou se mostro a ela que a melhor coisa a fazer é caminhar na direção oposta porque a luz não tem comunhão com as trevas." Muitas vezes, a ausência ensina mais do que a presença. E isso não é necessariamente falta de amor. Quem ama, educa, ensina, cuida e propicia o aprendizado.
 
Eu disse que não faria uma introdução e parece que é a sina de todo ser inteligente: introduzir-se antes de dizer a que veio. Todo ser inteligente precisa fazer e receber uma introdução.
 
Nesse caso específico,  eu o faço porque tenho dificuldade de lhe dizer à queima roupa: - “você tem mudado ou permanece o mesmo, ano após ano?” Não faço essa pergunta para os seres que se consideram tortos, para aqueles que cresceram ouvindo a família dizer de si: “ pau que nasce torto, não tem jeito, morre torto.” Faço essa pergunta - apenas a título de reflexão- para aqueles que são retos, para aqueles que são ilibados, para aqueles que no ato de viver deram certo. Ou deram errado. Mas vivem, e por estarem vivos, deveriam estar vivos em estado de permanente evolução.
 
A evolução do ser humano não é tão simples quanto parece, não é tão óbvia quanto Darwin propunha, não é tão aparente quanto os estágios de nascimento, crescimento e morte. A evolução do ser humano é em última análise, uma evolução espiritual. Somos seres espirituais. Caminhamos em direção ao abandono inexorável da matéria. Em algum ponto do caminho, a matéria desprender-se-á de nós,  e nós nos desprenderemos da matéria.  Esse fato, de facílima comprovação científica,  deveria  fazer-nos pensar: “se em algum ponto do caminho, tenho que abandonar a casca, não seria sensato, que nos acostumássemos gradativamente a receber a idéia? Não seria coerente que, a cada dia, nos transportássemos, pouco a pouco, para um estágio superior de existência, de maneira que,  quando acontecesse o transporte definitivo, pouca coisa restasse a ser transladada em nós?”
 
Esta semana, minha filha muda de endereço. Há cerca de um mês, ela vem transportando os seus pertences para o novo ninho. Devagar, foi planejando e realizando tudo: começou levando as roupas de inverno, já que estamos em plena primavera,  e as roupas de inverno não lhe são mais necessárias, nesta época do ano.  Hoje, faltando dois dias para o casamento,   vejo a enorme pilha de DVD’s que ela separou, juntamente com os seus livros.  Creio que são as últimas coisas a serem transportadas, embora, a cada dia ela me peça para levar algo que é meu, e que ela gosta. Mas, quase tudo já foi conduzido. Abro as portas dos armários  e estão vazios. Olho o quarto e já pressinto a  falta. Ela  preparou-se antecipadamente  para a mudança, e eu venho me preparando para acordar e não ter mais a quem trazer, pela manhã, o café na cama. E assim no sábado, quando o sol se levantar,  não terei surpresas:  estarei preparada para absorver o impacto, sem a síndrome do ninho vazio que o acompanha.
 
Isso é planejamento do consciente para o inconsciente. Já que o inconsciente não se planeja, e às vezes, parece ser burro,  o consciente precisa abastecê-lo com esse tipo de informação.
 
Mas o mundo inteligente não exerce esse mesmo planejamento quando se trata de evoluir espiritualmente para facilitar o transporte final. Às vezes, eu volto ao passado voluntariamente. Na verdade, “voluntariamente” não seria o termo. Mas  volto. E constato que, alguns daqueles de quem me separei, há mais de vinte anos, continuam em volta de uma mesa, fazendo discursos, assentados nos mesmos lugares, exercendo as mesmas funções, satisfazendo os mesmos anseios terrenais, e nada neles parece registrar algum vestígio da evolução espiritual que é característica dos seres espirituais. Eles são terráqueos convictos, com os pés bem amarrados às correntes da terra. Mas eu não aguento, porque não sou! Sou uma cidadã do céu em estágio de evolução na terra. Aqui não é a minha Pátria definitiva.  
 
Eu não aguento os seres irremediavelmente humanistas e prezo muito quando eles respeitam a minha opção. Cada um na sua.  Porque os seres adaptados ao humanismo constroem seus ninhos em torno do humanismo. O humanismo  é o centro e é a periferia. É o Alpha e o  Ômega das suas vidas. Ele – o humanismo – é a sua razão de existir de forma tão humana. E tão rasa. E tão feliz. E tão paradoxal. Os humanistas fazem discursos humanistas louvando a humanidade do homem e não percebem que tudo quanto o homem precisa é de menos humanidade. O homem não precisa ser mais humano do que já é. O homem precisa ser divino. O homem não precisa de muitas palavras, ele precisa apenas da lembrança de que em algum lugar Deus existe, importa-se e vê.
 
Sinto que o mundo necessita de um humanismo revisitado. A idéia não é que se deixe de ser humanamente homem, em um dia, para nos tornarmos seres evoluidos espiritualmente, em outro dia. A idéia não comporta esforço físico, mental ou intelectual do tipo: “tenho que promover a privação dos meus sentidos.”  
 
A idéia é que, a cada dia, nos tornemos mais semelhantes a Cristo, aquele que já nasceu com a sua humanidade em nível de excelência máxima.  Ele já nasceu assim, mas nós - não. Nós temos que buscar essa excelência,  dia após dia, livrando-nos de hábitos estabelecidos, soltando as amarras que nos mantém  ancorados a um mesmo porto, cujo significado pode  resumir-se a uma  única palavra:   esquecidos!
 
Precisamos indagar: o que mudou em nós desde o último verão?  O que conquistamos com o nosso universo de atuação? De que maneira o mundo foi transformado pelas nossas palavras? Servimos o universo com a nosssa sensibilidade inteligente ou nos deixamos vencer pela insensibilidade poética, vaga e bruta que louva o pau e louva a pedra mas não realiza a síntese final? 

 Precisamos nos fazer uma última e definitiva pergunta: “Por que gastamos tempo com coisas importantes e nos esquecemos das essenciais?” *
 
 Entre o que é importante e o que é essencial, há uma linha fina, que precisa ser delimitada. Essa delimitação faz parte da grande busca.  Em buscando, encontraremos. Em encontrando, comprovaremos: como seres espirituais, a nossa busca não se dá por um caminho  alternativo, mas pelo único caminho possível. Porque como disse Santo Agostinho: “ Tu nos criaste para ti mesmo e a nossa alma nunca encontrará descanso até que descanse em ti.”

Só assim o encontro de um ser consigo mesmo, poderá acontecer.


* http://igrejalibertas.org/textos/alma_sarada.
 
Ana Ribas
Enviado por Ana Ribas em 26/11/2008
Reeditado em 26/11/2008
Código do texto: T1303915
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