Todos os gatos são pardos?

Noite alta, céu risonho e num sabadão daqueles com temperatura agradável e muita testosterona circulando no sangue, Miguel e Renato combinam de sair para beber(sempre), paquerar (idem) e terminar a noite nos braços de uma bela garota (sujeito à chuva e trovoadas). É mais do que justo, afinal após uma semana de trabalho árduo, Miguel que é Executivo de Contas Estratégicas do Mercado Cultural (vendedor de assinaturas) e Renato que é Gestor de Matriz Energética Humana a Baixas Temperaturas (gerente de congelados num supermercado) merecem conquistar seus troféus- numa visão bem machista. Miguel, passou sua manhã de sábado no cursinho de inglês, treinando falar aquelas benditas palavras que tem "th", como thursday, sem transformar a língua entre os dentes num canhão de perdigotos e Renato foi dar aquela justa contribuição para alimentação da família, carregando uma bolsa com 6 dúzias de laranja.

E eis que chega a noite, Miguel e Renato estacionam o chevetinho rebaixado e devidamente caracterizado com um imenso adesivo "Terror das Txutxucas" no vidro traseiro e partem para a caça num baile de charm-funk-funk melody-hip hop lá em Parada Angélica. Toda a metodologia de caça e abate é seguida, desde o reconhecimento do terreno até o posicionamento num ponto estratégico com vento e condições de terreno favoráveis, um planejamento tático que faria Clausewitz ficar orgulhoso. Na Segunda Guerra Mundial, os soldados consumiam anfetaminas para lutarem com mais disposição e assim como naquela época, nossa dupla dinâmica parte para a ingestão de uma fileira de latas de cerveja, o lubrificante da alma nas grandes conquistas amorosas de sábado à noite. O problema dos estados alterados da mente é que o julgamento da relevância do alvo fica afetado ou, trocando em miúdos, pegar uma tremenda baranga fica mais "aceitável" e tão certo como dois e dois é quatro, Miguel escaneia o ambiente, trava o alvo na alça de mira e posiciona-se para o tiro certeiro numa beldade recostada no canto do salão. Uma maravilha, cabelo alisado com chapinha, sainha jeans curtíssima, mostrando o indefectível piercing no umbigo, top verde (3 por R$12,00 no Saara) e tamanco salto grosso n0 17.

- Pááára Miguel, é sério que você vai dar idéia praquela (sic) mocréia?

- Ih, fala sério Renato, já é meia-noite, nesta hora todos os gatos são pardos.

Eis que sorrateiramente e com a elegância típica dos felinos, um gato vira-lata branco com listras laranjas se aproxima da dupla e vocifera:

-Como assim todos os gatos são pardos? Vocês humanos são engraçados, gostam de generalizar as coisas. Misturam tudo num mesmo balaio, sem a mínima sofisticação na hora de julgar as nuances do universo. Como todos os gatos são pardos? Observem meus pelos brancos, alvos e sedosos, minhas listras amarelas, sutis detalhes que compõem esta beleza de cobertura neste corpinho elegante.

Incrédulos Miguel e Renato olham para o gato, olham para a cerveja, olham para o gato e pensam se existia alguma substância alucinógena no fundo das latas. Terá sido a maionese com atum do almoço?

- Peraí seu gato, todos os gatos são pardos é só um jeito de falar entendeu? É pra dizer que qualquer gatinha serve hoje sacou?

- Ah sim, então para facilitar seu julgamento tosco, vocês nos classificam como "a mesma coisa". É bem típico de vocês, dizer que mesma coisa é um prato de macarrão. Como assim a mesma coisa? Esquecem-se das variedades de massas, do caneloni, da lazanha, do rondeli. Até entre as massas de forma semelhante temos diferenças, um spaghetti não é um talharim. Isso é um desaforo com os criadores destas maravilhas da culinária. Você gostam de dizer que tudo igual é um caminhão cheio de japoneses. Como assim tudo igual? Toshiro não é igual a Suzuki, que é diferente de Mitsuhara, que nada tem haver com Ioshita. E a personalidade, e as diferenças de tônus muscular? Coitado do Toshiro que malha tanto na academia, ser comparado ao magrelo do Ioshita! Quer saber cansei de vocês, humanos generalistas. Quando souberem apreciar a sutileza das diferenças serão mais sábios e felizes.

E assim como elegantemente chegou, nosso gato filósofo sai de fininho e some na penumbra do salão.

Perplexidade e espanto, nossos amigos, que já perderam qualquer oportunidade de terminar a noite acompanhandos, resolvem sair e comer um churrasquinho na esquina em homenagem ao erudito gato que acabaram de conhecer. Sentam-se nas cadeiras de ferro junto à churrasqueira feita de barril de aço e aguardam os espetinhos redentores com carne, lingüiça e frango. Tomando mais uma cerveja, pensam longamente no discurso do gato e das diferenças que sempre passam desapercebidas nessa nossa correria diária.

- O de você está pronto, querem farofa?

- Diz uma coisa seu Inácio, esse espetinho é feito com que carne? pergunta Miguel.

- Ah Miguel, isso é carne de primeira, às vezes alcatra, às vezes maminha, mas não faz muita diferença.

- Faz sim, vocifera Renato. Você tem que entender a sutileza da diferença, a alcatra por exemplo tem fibras musculares mais longas e portanto....

Arnaldo Ataulfo
Enviado por Arnaldo Ataulfo em 05/04/2006
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