A Bolinha de Papel

Numa bela tarde ensolarada do escaldante verão carioca, o centro da cidade fervilhava de gente apressada, mães atentas aos filhos serelepes, executivos ocupados, metidos em ternos absolutamente inadequados ao clima, falando ao celular, esse indispensável acessório da vida moderna. Camelôs vendendo de tudo, aos berros, um olho na freguesia, outro na Guarda Municipal, que com seus uniformes de combate à Darth Vader por vezes propiciam uma verdadeira revoada de ambulantes pelos becos do Centro. Um senhor, muito religioso por sinal, brandindo a bíblia e gritando a salvação através de Deus a plenos pulmões, enfim, um dia normal como outro qualquer nesta cidade maravilha, purgatório da beleza e do caos até que, vindo pela Cinelândia em direção ao Largo da Carioca surge uma figura anônima, cujo uniforme a faz mais conhecida, uma carteira (feminino de carteiro, por favor), uma simpática carteira, carregando sua bolsa lotada de cartas, levando contas para muitos, cartas de amor para alguns, quem sabe um cheque polpudo para poucos. Sempre que vejo um carteiro lembro de quando morava em casa e ouvia aquela batida de palmas, daquele rapaz vestido de amarelo e azul, sempre sorridente, sob sol ou chuva. A carteira da Cinelândia jogava uma bolinha de papel amassado, uma pequena inocente bolinha, feliz e entretida em sua caminhada com a bolinha que subia e descia de suas mãos, tal qual uma bola de vôlei nas mãos de crianças em férias ou uma peteca nas mãos de alguns aposentados na praia em Copacabana. Tranqüilo entretenimento, até que, tal qual Nalbert, Tande ou Giovanne, nossa amiga carteira dá uma violenta cortada na bolinha, que rola pela calçada até juntar-se a outras modalidades de lixo espalhadas pelo chão.

Congelando a singela cena, vemos a carteira, vestida de bermudas, uma natural e racional mudança de uniforme, salutar e necessária para quem caminha horas à fio sob o impetuoso sol do Rio de Janeiro. A bermuda é o grito de liberdade do profissional que trabalha na rua e que sabe o desconforto que causa uma calça comprida num calor de 40 graus, é um pingo de cultura própria num país tropical que teima em adotar idumentárias européias como terno e gravata em nome da elegância, mesmo que o preço seja camisas coladas ao corpo e ensopadas de suor, mesmo que o coitado que as usa sofra de mal estar devido ao traje absolutamente inadequado ao nosso clima. Ponto para o Brasil.

Nossa carteira então, despojada e feliz, aplica a certeira cortada na bolinha que jaz no chão à espera de um gari para recolhê-la, um alguma criança para chutá-la um alguma chuva para carregá-la para o bueiro. Uma servidora pública, pois assim são os carteiros, como os policiais, como os garis, são servidores públicos, servem- e servir é uma palavra tão combatida no Brasil, esse país de hábitos fidalgos- à população, que lhes paga através dos impostos, numa relação que deveria ser de respeito com a coisa pública. Mas não é, e assim como todos nós brasileiros, nossa carteira jogou, feliz e contente, sua bolinha no chão, tal qual o executivo joga a guimba de cigarro, a criança joga a embalagem do sorvete e o senhor joga a garrafinha d' água. Assim como a carteira, poucos nutrem o devido respeito pelo país, poucos dão importância às atitudes cotidianas corretas como respeitar filas e não jogar sujeira no chão. E assim vamos seguindo, imputando aos políticos nossas mazelas, reclamando do prefeito quando a chuva corre por cima de bueiros entupidos e jogando nossas bolinhas de papel no chão, sedimentando a idéia de que no Brasil, o que é público não tem dono.

Arnaldo Ataulfo
Enviado por Arnaldo Ataulfo em 11/04/2006
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