CONVERSA  ÌNTIMA.


"Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira."



- Pare e escute o mar. Lembre-se que o som das ondas quebrando lhe acalma.
- Tá louca? Como vou ouvir o mar daqui?
- Antigamente se ouvia.
- Eu soube disso, mas naquela época não havia tantas construções, nem tantos sons  separando  as pessoas do mar.
 - É verdade, mas o vento...
 - O vento eu sinto. Ele está agorinha aqui fazendo festa no meu cabelo.
 - Festa? Ele está lhe deixando mais assanhada ainda.
 - Quer parar? Só falta dizer que engordei.
 - E não engordou?
 - Sim, mas não preciso que me digam. Já me basta o desconforto das roupas apertadas. Você queria o quê diante de tanta festa de um mês para cá?
 - Calma. Só estou querendo lhe ajudar.
 - Me ajudar?  Onde você aprendeu que chamar alguém de assanhada e gorda é ajuda?
 - É o que todo mundo diz. Aliás, a mídia grita que as mulheres devem ser magras e  acabar com os cachos. 
-  Então a minha briga é com o mundo todo hoje.
- Prefere brigar?
- Às vezes é preciso brigar contra os padrões. Eu costumo lutar muito antes de ceder a certas imposições.
- Então não reclame.
- Reclamo na hora que quiser, tá certo?
- Mas, você  precisa se acalmar.
- Preciso sim, mas antes tenho que pensar.
- Você pensa demais.
- Penso mesmo e daí?
- Daí é que você pensa na hora errada.
- Você disse a primeira coisa aproveitável na noite. Eu penso muito antes ou depois. Não penso na hora de decidir.
 - Tá vendo? Eu lhe conheço.
 - Claro que você me conhece. Você é parte de mim.
 - E você vive brigando comigo...
 - É. Temos uma convivência íntima e complexa.
 - Complexa, não. Tumultuada. Você parece me detestar.
 - Não. Eu não lhe detesto. O que eu detesto é essa sua mania de se meter na minha vida.
 - Mas eu sou você!
 - Você é minha carcereira. Você quer me amordaçar, me prender, me enquadrar. E eu odeio quem tenta me dominar.
 - Ah, é? E se eu tivesse me omitido onde você iria parar com suas idéias românticas e libertárias?
 - Agora senti até piedade de você. Dei muito trabalho. Fui indisciplinada e afoita.
 -  Sem falar desse coração melado que você tem e dessa mania de viver no mundo da lua.
 - Sinto muito. Eu sofri. Você sofreu?
 - Claro que sofri é em mim que dói quando você cai.
- Dói em mim também e muito.
- Essa sua intensidade me assusta, Por isso tento lhe conter.
- Controle eu não suporto. Também não aguento esse seu lado superficial.
- Eu sei. Você nem lê Caras.
- Você é tão metida a séria e não sabe que Caras não se lê. Caras se vê. E eu não gasto dinheiro com bobagens.
- Ah, cadê a moça sem preconceitos e que se diverte com séries na TV?
- Dormindo e não estou criticando ninguém, apenas dizendo que não gosto dessas publicações.
- Pois durma você também.
- Eu quero dormir e sonhar.
 - Já disse para escutar o  mar. Você adormecia assim quando criança.
 - Por falar nisso, viu como o mar estava lindo ontem à tarde? Descansei meus olhos contemplando-o.
 - Vi sim. Agora me responda o motivo daquelas lágrimas que beiravam  seus olhos em meio a tanta alegria.
- Nem me fale. Eu ainda não sei explicar e você deveria saber.
- Desculpe, mas estava tão emocionada quanto você.
- O vento continua aqui. Você sente?
- Não sinto, mas o vejo  balançando a rede e brincando com seus cabelos.
- Assanhando, você quis dizer.
- Não, eu quis dizer brincando, mesmo. Não quero lhe ver triste.
- Jura?
- Juro, eu ouvi aquele seu amigo dizendo que quem a conhece  bem não  lhe achará feia nunca.
- Ele é tão doce.
- É mesmo. E como eu lhe conheço melhor do que ninguém, não vou mais falar mal de sua aparência.
- Só da aparência?
- Não. Eu prometo não lhe afligir com culpas e medos, desde que você jure cuidar de seu coração.
 -Obrigada. Eu juro!
- Que bom, agora deita e dorme.
- Será que terei sonhos bons?
- Isso não é da minha competência, mas que eu saiba seus sonhos estão sendo ótimos ultimamente.
- Estão sim, tenho que agradecer à outra parte de mim.
- Fico feliz por termos nos entendido. Meu trabalho é árduo, mas minha missão é lhe proteger. A da outra parte é mais fácil, pois busca a sua felicidade sem pensar.
- Desculpe, por atender mais fácil aos chamados dela.
- É natural. Acontece com a maioria das pessoas.
- Boa noite, vou me deitar.
 - Vá e tente ouvir o mar. Eu falo com a outra para caprichar nos seus sonhos hoje. Soube que tem alguém louco para participar. Vou me fazer de doida e deixá-lo entrar.
 -Valeu! Vou acordar feliz e amanhã recomeço a dieta.
 



"Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente."




* Emprestei versos de Ferreira Gullar do poema Traduzir-se.

Evelyne Furtado
Enviado por Evelyne Furtado em 19/01/2009
Reeditado em 03/08/2010
Código do texto: T1392426
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