Uma velha no corpo de moça

No rádio uma canção qualquer de um cantor que fizera muito sucesso em tempos idos. Na cabeça umas palavras, a voz embargada pelas lágrimas que nem desciam. Assim se encontrava Beatriz. Esse era o final de uma história de amor, que talvez só tenha acontecido na cabeça da moça. O coração apertava e tinha vontade de pular pela boca. Lembrou da noite anterior. Pensou em si mesma e em tudo que estivera fazendo ao longo de duas semanas apenas. Mas era o fim. O fim que existiu antes mesmo de um começo.

Toda história precisa de um começo, então vamos começar com a ordem cronológica das coisas. Beatriz contava então 29 anos. Jovem, bem sucedida em sua carreira de fotógrafa profissional, olhos azuis, cabelos na nuca pintados de preto pra disfarçar os fios loiros de nascença, esbelta, seios fartos, uma espécime fabulosa de mulher. Homens aos seus pés não faltavam então nessa fase. Mas Beatriz costumava dizer que tinha o dedo podre para escolher um companheiro.

Já estava namorando o Rafael a um ano e meio, mas as coisas não mudavam entre eles. Ele era homem do mundo, gostava de curtir sua liberdade em todo o sentido amplo da palavra. Ela fingia não ver as escapadas dele depois de um ano, já não adiantava gritar, espernear, chorar, pedir, porque simplesmente vez por outra surgia uma terceira pessoa entre eles. E ele sempre dizia a mesma coisa: “é você quem eu amo! Eu vou mudar! Me dê mais uma chance!”. A moça já nem se incomodava tanto, na realidade ela já achava que aquilo não era mais nada, era apenas uma forma de não estar sozinha, de não ter que procurar em outro aquilo que ela sabia... mais cedo ou mais tarde revelaria ser tão deficiente ou mais que Rafael. Acabou se acostumando com as coisas como elas estavam, e para se sentir menos vazia e solitária acabou por fazer as mesmas coisas que ele. Saía, conhecia pessoas, de vez em quando se envolvia com outros caras e por fim deixava-os e continuava com ele. Talvez fosse a química entre eles, talvez a teimosia dela, ou apenas a falta de coragem de começar tudo novamente, do zero.

Beatriz já se sentia velha, em idade de casar e ter filhos. O relógio biológico batia aceleradamente, fazendo questão de mostrar a ela que o tempo passava rápido, e que mais dia menos dia ela se olharia no espelho e a juventude já teria passado.

Em suas preces mais profundas ela pedia a Deus que se Rafael não fosse o cara certo para estar ao lado dela que então ele fosse embora, deixando-a em paz e sem dor. Mas até esse momento ele nunca ficou mais que uma semana fora. Mesmo que ela não ligasse, não pedisse explicações ele voltava, com o sorriso mais lindo do mundo, como no primeiro dia em que ela o viu. Agora olhava e parecia que apenas o sorriso importava, alguma coisa dizia que aquele sentimento bonito, aquele desejo de passar a vida ao lado dele já tinha deixado seu peito e encontrado outra morada. Mas cadê coragem para ficar sozinha? Cadê?

Um dia ao dar uma pausa na sessão de fotos no Jardim Botânico da cidade Bia se deparou com um grupo de adolescentes que faziam uma espécie de piquenique. Se sentou perto para observá-los, afinal, já fazia tempo que ela não tinha essa idade. Perguntou se podia fotografá-los assim, em grupo, e eles assentiram risonhos. Aqueles sorrisos que ela mesma dera a muito tempo atrás. E ali, naquela tarde relembrou como era bom sorrir despreocupadamente. Terminada a pausa a moça deu alguns de seus cartões profissionais para os jovens prometendo que enviaria as fotos deles por e-mail. Assim que as tivesse editado. E foi-se embora, contente, terminar seu trabalho.

A noite em casa alguns dos jovens já haviam adicionado ela em seus orkut’s e pedido para que ela lhes passasse as fotos, o que ela fez tão logo tivesse tomado um banho quente e relaxante. Assim o fez. Trocou mais algumas mensagens de negócios e se permitiu relaxar na frente do computador, riu muitíssimo com as fotos dos álbuns dos jovens. Realmente, era bom demais aquela fase deles, lembrou-se. Alguns pediram seu MSN, e ela passou, apesar de não ficar muitas horas logada era bom trocar idéias despreocupadas.

Um dos jovens em específico, André, estava online e ficaram trocando idéias enquanto Beatriz tomava um cálice de vinho para relaxar o corpo e a mente. E foram falando, falando, falando... o tempo passou como que num piscar de olhos e quando Bia viu já era então 4:30 da manhã. Assustou-se com o avançar da hora, despediu-se ainda sorrindo de todas as coisas engraçadas que falaram e foi dormir, ainda pensando no garoto, que com 18 anos a fez rir como a muito não fazia, deu um último sorriso, desligou o computador e dormiu.

O outro dia não foi tão diferente, após seu trabalho teve uma pequena discussão com Rafael mais uma vez, para variar e dessa vez não sentiu a menor vontade de ligar pra ele pra saber como estava. Ao chegar em casa depois de longo banho deu uma relaxada e ao acordar, 00h entrou novamente no MSN. Lá estava seu novo coleguinha, Dé, como ela o chamou carinhosamente, estava ali, contente, risonho, fazendo-a rir e esquecer de tudo que a tinha deixado irritada durante o dia. Nem sequer lembrou de Rafael ou das grosserias que ele tinha feito a ela mais uma vez. Afinal, não era novidade alguma a maneira como ele a maltratava.

O que deixava Beatriz contente era poder falar e rir na frente de seu computador com um garoto. E eles falavam de tantas coisas, de vida, de sonhos, de paixões desastrosas, de futuro, de passado e de sexo, e aventuras, viagens. Enquanto Bia mostrava para ele o seu mundo, aquele no qual ela estava inserida ele dava a ela uma parte de seu próprio mundo, contava de inúmeras coisas que já tinha feito com tão pouca idade. E era uma espécie de flerte, despretensioso e gostoso, onde ambos sabiam que aquilo não poderia dar em nada, mas que era bom de estar dentro, para a moça era bom se sentir viva novamente, as conversas mexiam com seu imaginário, mexiam com alguma coisa que havia sido cerceada.

A cada noite acontecia a mesma coisa. Por alguns dias, uma semana... iria completar duas semanas quando Bia sentiu necessidade de encontrar Dé pessoalmente, ela tinha vontade de tocar sua pele, o desejo pelo beijo era claro e confuso em sua mente. Estaria apaixonada? Logo ela, mulher bem resolvida... não poderia ser. Ligou pra ele e quis marcar um encontro, ele se esquivou. Ela como era decidida e teimosa foi para perto da casa dele e ligou. Pedindo que ele a fosse ver, pois ela precisava ir pra casa de uma amiga que morava por ali, mas não sabia como chegar. Ele assentiu e foi vê-la.

Ao chegar perto o clima foi ficando mais tenso, o ar mais pesado, a mão da moça suava. O rapaz não conseguia falar direito. Mas fez companhia a ela. E ao levá-la ao ponto onde ela iria para a casa da amiga ela parou no meio do caminho, sorriu, andou em direção a ele e o beijou. Nada que tentassem falar sairia naquele momento. Ela uma mulher feita, ele um rapaz, um menino, e os dois embargados pelo desejo de que aquele beijo não terminasse, um beijo se tornou dois, três, cinco, e o tempo mais uma vez passou como que um trem. Despediram-se, cada um seguiu seu caminho.

André e Beatriz voltaram a se falar ainda pela internet, mas alguma coisa havia mudado. Embora o desejo ainda estivesse ali, dentro de cada um deles... algo estava diferente. Ela não conseguia mais se sentir relaxada ao falar com ele e ele já não a fazia rir como antes. E depois de muitas sessões de conversas na internet ele contou para ela que se sentia mal com o fato dela ter um namorado e que mais ainda... era apaixonado por uma outra pessoa. Uma das meninas que estavam no dia das fotos, uma menina da idade dele, aliás, mais nova ainda, 16 anos. O mundo parou lentamente de girar na frente da Bia, mas ela sabia que a tendência era que isso ocorresse mesmo. O contrário que seria improvável. Rafael a procurou então mais uma vez com aquela mesma cara e ela o recebeu mais uma vez, mas dessa vez alguma outra coisa tinha mudado, ela.

Ao se ver nos braços daquele homem, na hora do prazer ela se sentiu em algum outro lugar, e a vontade de chorar como adolescente que descobriu não ser correspondida pelo paquera foi grande. E ela nem podia chorar ali, não naquele momento. E foi segurando a vontade de chorar. E segurando e segurando. E no dia seguinte, após o namorado ir trabalhar, pela primeira vez em anos ela não conseguiu se levantar para ir também. Se sentia triste, angustiada, sozinha e incrivelmente apaixonada por alguém que não tinha nada para fazê-la feliz, mas explodia dentro dela um sentimento de perda sem explicação... uma dor sem fim... e no rádio aquela canção que teimava em dizer... “por que não eu?”.

Levantou, tomou um banho quente e atirou-se à frente do computador como que para resgatar aquilo, como que para compreender toda a situação, mas ao final de horas chegou a uma conclusão. O rapaz, por mais novo que fosse ajudou-a a se ver, a se perceber, fez com que ela compreendesse que aquilo que ela tinha antes estava longe de ser bom. Que ela não era velha ainda e que nem precisava agir como se fosse... Lentamente ela deu um sorriso e agradeceu a ele por isso, ela sabia que provavelmente André jamais saberia que a salvou, mas o fez de todas as formas que alguém pode fazê-lo. E decidiu que não estava velha demais para ser amada e nem morta ainda, que depois dessa experiência sensacional e transcendental a vida iria ser levada e seguida por um outro prisma. A amizade do rapaz seria uma coisa que ela gostaria de ter eternamente. Ele foi um marco na vida da Bia. Um marco de que Deus existe e nos fala quando menos esperamos e de lugares que não esperamos também. Ela era agora uma moça no corpo certo e não mais uma velha no corpo de moça.