O INÍCIO DO FIM

O INÍCIO DO FIM

- Não há mais minhocas como antigamente – comentou, com voz lastimosa, o Bagre, lá no riacho – comi uma minhoca, ontem, após a chuva, depois que a água turvou. Até agora estou com dor de barriga.
- Eu não caço com água suja – retrucou a Traíra – perdi dois filhotes envenenados e dois pegos num anzol dum pescador. A juventude não ouve os conselhos dos velhos. Até nossas crianças pequenas caem na rede de malha fina.
- Nossa raça não resiste à caça na água turva. Ou somos pegos no anzol ou o veneno nos extermina. Não sei se não contaminamos quem nos come a carne, peixe grande ou pescador afoito. Ouço passos! É melhor procurar refúgio.
Enquanto isso, lá no alto da goiabeira:
- Por que você faz sua toca no Barranco do Rio, Tatu?
- Olhe, senhora Pomba, se ainda há mato lá adiante? Eu não arrisco meter o focinho na terra de lavoura. Fede rápido a veneno. Minha companheira está sem forças para cavar depois que comeu formigas, na beira do mato, que haviam se alimentado de folhas de soja.
- Você não acha que a morte de todos os meus filhotes ocorreu por causa dos insetos que lhes levei, catados lá na lavoura?
- É o mais evidente. E sabe mais: se um caçador conseguir, nos matará e comerá e, ainda por cima, secará minha casca para utensílio, enquanto dispersa as suas penas pelo vento.
- Meu marido morreu por uma imitação de meu canto. Uma saraivada de chumbo abateu ele e, estou aí, viúva e sem filhos!...
Não longe dali, junto à casa da fazenda, a Paineira sussurra consigo mesma: “ah! tempos bons aqueles quando mestre João-de-Barro vinha construir sua casa em meus galhos e o maestro Sabiá passava horas ensaiando seu concerto e depois apresentavam suas esposas um ao outro, ficando a se gabar de sua beleza, fazendo a maior festa no fim da tarde. Cada final de primavera a população aumentava. Como é monótona a vida depois que a moda da “passarinhada” dizimou os moradores e o tempo destruiu suas casas!”
O eucalipto balança seu corpo esguio, seus muitos companheiros o imitam. Eles sabem que ocupam o lugar que era de outros no passado. É o Banhado que resistia até às secas mais prolongadas. Sempre havia um pouco de água. Mas depois da abertura do “valetão” pelo qual escorreu toda a água, o terreno secou e os eucaliptos foram plantados. No início, a Capivara, vendo o perigo se mudou para o rio lá adiante. O cabeçudo do Ratão não acreditou e, dias mais tarde, foi apanhado com toda a família pelo caçador. Os eucaliptos sabem, também, que o Capim sem água não viceja e quanto mais alto eles crescerem menos fica a luminosidade e o ar propício aos moradores do ex-banhado.
O Riacho corre rápido com sua pouca água para fugir da triste sina que o persegue depois da morte do Banhado, cuja água chegava sempre, vinda pelo solo e bem limpa, filtrada pelas raízes da Mata, derrubada e queimada, dando lugar à lavoura. Os eucaliptos, plantados no lugar do banhado, não deixam acumular a água. Quando cai uma chuva forte, ela vem toda de uma vez, trazendo muita Terra que vai enchendo o leito, entupindo as tocas dos Peixes e dos Bichinhos, os poucos sobreviventes e, pior – impregnada de substâncias venenosas , matando, aos poucos, os últimos espécimes vivos. Depois vem a ausência das chuvas e somente um filete de água arrecadada das fontes fraquinhas, ainda dá o nome àquele que, outrora, fluía orgulhoso de Poços profundos, de Cascatinhas ruidosas, de Guabirobas amarelas alimentando suas Traíras e Bagres, que se divertiam assustando Lambaris e Carás, de Ratões e Capivaras na festa dos banhos e caçadas, de Tatus despreocupados focinhando nos Barrancos, de Capim e Inhame nas Ilhotas, de água, de vida!...
Ouvi a conversa dos peixes no riacho. Escutei o diálogo da pomba e do tatu. Captei o sussurro da paineira. Senti o pesar dos eucaliptos pela intromissão involuntária no complexo do banhado. Chorei com o destino do riacho. Estou louco para mostrar a meus filhos o “Replay” de uma festa a que infelizmente não puderam assistir ao vivo.