Elogio aos sete pecados capitais: a cobiça

Com devido respeito à decisão religiosa que a classifica como pecado capital, em muitos casos, a cobiça é necessária à sobrevivência. Porém, devido a alguns equívocos, ela pena no conceito popular.

A má interpretação já começa com a nomenclatura. A cobiça também atende, ingênua e injustamente, pelo nome de avareza. Embora estes dois substantivos em algumas situações assumam significados semelhantes, em outras apresentam significados antagônicos. Avareza é o apego excessivo ao dinheiro, à riquezas; e cobiça é o forte desejo de possuir ou conseguir alguma coisa. Logo, a pessoa que deseja fortemente não possui e a que possui deseja fortemente manter o que a outra não possui, mas deseja. Os significados são, ao mesmo tempo, muito parecidos e diferentes, o que complica tudo. Uma situação pode acarretar a outra, mas não é a mesma coisa.

Os cristãos devem ter se confundido também, e talvez tenham ficado receosos em acrescentar mais um pecado à lista e aceitaram dois termos assumindo a posição de um pecado só. Contudo, nesta crônica, tratarei apenas da cobiça, a avareza serviria de conteúdo para outro texto.

Depois de quase dois milênios de condenação, já é hora de dizer algo favorável a respeito da cobiça, o pecado que é um de nossos instintos mais fortes. Desde o período da pedra lascada, quando nossos ancestrais eram movidos por instinto e não por razão - o verniz da civilização -, a cobiça, que ainda não era pecado, permeava as relações. E acredite, somos descendentes dos maiores e melhores cobiçadores da Pré-História; o contrário, não estaríamos aqui - eu escrevendo e você lendo este texto -, refletindo sobre esse pecado que se apodera de nosso ser de modo demasiado subliminar.

Continuando com o homem paleolítico, se não fosse a cobiça dos machos ancestrais pelas fêmeas mais jeitosinhas, nossa aparência seria risível; estaria altamente comprometida e, às mulheres atuais, não haveria Daslu que desse jeito no visual. Mais importante ainda: se não fosse a cobiça das fêmeas da pedra lascada pelo macho mais forte, viril e com condições de proteger a prole, o que seria de nós? Nem existiríamos. E se conseguíssemos existir, seríamos raquíticos e mal-desenvolvidos porque as menos cobiçadoras da antigüidade se interessavam pelo macho franzino e mal-aparado.

Agora uma abordagem mais séria. Considerando que o Brasil é um país onde garantias individuais de sobrevivência não são asseguradas a ninguém, a cobiça deveria ser característica inata aos brasileiros. Todos os bebês brasileiros quando pegassem as filas para receber cabelos, unhas, nariz, boca e dedos deveriam também receber a cobiça como algo indispensável à sua passagem pela vida. Mesmo porque, não nos esquecendo que estamos no Brasil, a falta de cobiça pode prejudicar vários outros órgãos: o estômago, porque precisamos lutar para conseguir comida; o cérebro, porque necessitamos brigar para tentar receber boa educação formal... Poderia citar várias outras partes do corpo, talvez todas, mas ficaria cansativo. Então, prefiro mencionar uma aflição que sintetiza todas as outras: a disputa pela dignidade. Essa já resume a situação da educação, saúde, emprego, moradia e tudo o mais.

Só para concluir. A cobiça faz parte da natureza humana e não nos é possível lutar contra isso. Temos apenas que moderá-la porque todas as emoções e instintos que nos habitam necessitam de equilíbrio; senão não conseguimos seguir com vida saudável. E por último: quem não anseia por mais não evolui.

Carmem Lúcia
Enviado por Carmem Lúcia em 05/05/2005
Reeditado em 06/05/2005
Código do texto: T14869