CONVERSANDO COM O VENTO

Sentíamos grande alegria quando meu pai nos informava oficialmente que iríamos passar as férias escolares na fazenda da avó Claudemira. As terras ficavam num vilarejo chamado Caem, no município de Jacobina - cidade do sertão baiano, rasgada ao meio pelo Rio do Ouro – distante cerca de 600 km de Salvador.

A casa-sede da fazenda tinha uma dignidade simplória, própria das moradias daquela região. Estava sempre caiada de branco, com as vigas e os caibros pintados de azul. Parecia ilhada por um extenso terreiro de chão batido à sua volta, onde ciscavam inúmeras galinhas, patos, tô-fracos, e mais um sem número de animais domésticos, onde não poderia faltar pelo menos um cachorro de caça.

Aquela paisagem nada citadina, associada às peculiaridades daquela gente de expressão guerreira vestida, na maioria das vezes com roupas de couro, fazia com que tudo que víamos, ouvíamos e comíamos, parecesse mágico. Eu sentia-me um Harry Potter nordestino!

Eu e Darticléa - minha irmã quatro anos mais nova – costumávamos nos sentar na varanda da frente que, quase sempre, estava banhada por raios de sol. E aquele era um outro sol – um sol sertanejo - parecia estar muito mais próximo da Terra do que afirmam os astrônomos. Darte – como nós a chamávamos - olhava absorta para o céu anil, onde as pombas-rola e as andorinhas traçavam malabarismos de dar inveja para os pilotos da Esquadrilha da Fumaça.

A secura do ar nos obrigava a ir constantemente até a cozinha, para imergir um velho caneco de alumínio dentro do porrão de barro – era a geladeira da caatinga. Retirávamos generosas porções de água, logo repassadas para um copo de vidro, e aí bebíamos com um prazer que nunca havíamos experimentado na nossa casa.

O vento parecia ter perdido o endereço daquele recanto. Talvez ele estivesse em um colóquio qualquer no sul do país ou quiçá, se encontrava no meio do Oceano Atlântico, conspirando juntamente com algumas nuvens soturnas a formação de mais um ciclone tropical. Lá na fazenda é que ele parecia não ter qualquer propósito em aparecer tão breve.

Como que adivinhando a nossa ansiedade por um sopro qualquer de Éolo, a nossa bisavó Iaiá, se achegava até nós dois. Vinha tateando agilmente pelas paredes, lendo com a ponta dos dedos aquele imenso braille de barro, cal e madeira que era a casa. Sentava-se no batente da porta bem ao nosso lado. Era cega – por causa da velhice mesmo - e já carregava no coração seus 101 anos de vida guerreira – chegou inclusive a conhecer Lampião.

Iaiá, seria aquela pintura que Da Vinci com certeza gostaria de ter feito. Uma Monalisa, só que do agreste nordestino. Sorriso calado, enigmático – e, apesar de humilde tinha a postura de uma condessa genovesa.

Tinha o costume de riscar com o carvão, um pequeno traço nas paredes da cozinha, para cada mês a mais de sua vida. Após fazer aquelas marcações que mais pareciam inscrições rupestres de um povo ancestral, ela falava solenemente:

- Deste ano eu não passo. No ano que vem quando vocês voltarem, não vão mais me ver viva !

As paredes da cozinha ficaram quase todas recobertas com riscos de carvão – quando morreu já estava com presumíveis 112 anos.

Já acomodada ao nosso lado, e fitando o tempo ela dizia para nós dois:

- Tá é quente, né meninos! Cês tem que chamá o vento – ele se chama Migué. Não sabem como faz, não ?

Nós, da cidade grande, não sabíamos direito nem o que era o vento, quanto mais como chamá-lo. Com sabedoria e paciência de um monge oriental ela então declamava o chamamento em ritmo de canção de ninar:

- Vem Migué. Sua mulher tá se queimando, Migué!

Ato seguinte, ela soprava um assobio longo que iniciava com um tom um pouco grave terminando num mais agudo, até quase perder a respiração . As repetições deste lamento se faziam necessárias para se despertar a desatenta e sonolenta brisa.

Nós aprendíamos rapidamente – criança adora estas ações mágicas e lúdicas - e assobiávamos algumas dezenas de vezes. Tudo sob a supervisão de Iaiá, que às vezes corrigia uma desafinada ou outra da nossa parte.

Acontecia o incrível! Em pouco tempo, as folhas de um pé de pinha ao lado da casa começavam a se sacudir nervosamente. Então, um vento gostoso dava beliscões na nossa cara e por fim, invadia a casa expulsando aquele mormaço desértico. Sem demonstrar qualquer surpresa via-se no rosto de Iaiá um sorriso de cumplicidade com aquele elemental que parecia ser seu amigo de muitos anos.

Há poucos dias atrás, aqui em São Paulo – numa tarde bem quente - eu tentei chamar o Miguel. Ele não veio.

Acho que desaprendi a chamar o vento. E o mais triste de tudo, é que não conheço mais ninguém que saiba falar a sua língua para me ensinar novamente.