O FARMACÊUTICO QUE NÃO SABIA LER...

Era uma sexta-feira à noite. Não havia aula. Época de calor propício para se tormar uma "geladinha" depois das obrigações, acompanhada de bons papos com os amigos, em uma das lanchonetes com música de som ambiente na praça de Periperi. No entanto, encontrava-me no interior do Comercial, sentado em um dos bancos circulares, construído de cimento,pintado de verde, com uma árvore de pau-brasil plantado no centro, conversando sobre política com o professor Luciano. Estávamos aguardando uma reunião de professores, previstsa para ter início às 20:00h e término as 21:30, para se discutir o sistema de avaliação da escola.

No melhor da nossa conversa, repentinamente apareceu o porteiro do colégio, senhor Florentino Bahia, torcedor ferrenho do time Bahia, chamado pelos alunos de "seu Bahia". Era um senhor de meia-idade, tinha a pele avermelhada, olhos castanhos claros, corpulentos, barrigudo, sobrancelhas grisalhas, cabelos lisos pintados de cor castanhos claros bem penteados. Quando falava com euforia gesticulava bastante, principalamente quando o Bahia ganhava uma partida. Não perdia um jogo do "Ba-Vi"* no estádio da Fonte Nova. O senhor Bahia mostrou uma receita médica ao professor Luciano, e perguntou se ele sabia qual o tipo de medicamento que o médico tinha prescrito na receita.

Luciano, professor de Química Orgânica do Curso Técnico em Química, do Comercial, também farmacêutico, diplomado pela Universidade Federal de Pernambuco, como também Licenciado em Química pela Universidade Federal da Paraíba, proprietário de uma farmácia em Periperi, próximo a Estação da Leste, balançando a cabeça, olhou para a receita dizendo:

- Bahia, a grafia do nome do remédio desta receita está ilegível, deixa-nos em dúvida quando ao nome correto do medicamento próprio para estômago ou o nome de um remédio específico para fígado ou de um nome de um medicamento próprio para circulação sangüinea. Da maneira como está escrito não consigo distinguir o tipo específico de medicamento. É melhor amanhã de manhã, você ir até ao seu médico e pedir para ele escrever com letras de forma o nome do medicamento nesta receita e me levar lá na nossa farmácia.

- É professor, eu já levei esta receita a mais de cinco farmácias e ninguém parece que consegue ler o nome do remédio. Uns dizem que não tem... Outros dizem que vai chegar... Alguns falam que acabou... Disseram-me em uma das farmácias que só o farmacêutico para identificar o nome do medicamento. O farmacêutico não se encontrava, pois eu deveria aguardar alguns minutos a sua chegada...

- Seu Bahia, lá em nossa farmácia eu tenho um dos três tipos de medicamento a que se assemelha a grafia desta receita. Depois que você for ao médico, passe em nossa farmácia, pois eu lhe farei um bom abatimento no medicamento, como eu sempre faço para os amigos e os nossos colegas. Caso no momento você não tenha o dinheiro, pode deixar para pagar no fim do do mês. Este medicamento é um pouco salgado.

Luciano me deu a receita e falou:

- Veja professor se você consegue ler alguma coisa?!...

- É Luciano. É difícil ler este hieróglifo! Eu acho que nem Jean-François Champolion que decifrou os hieróglifos da Pedra de Roseta se ressuscitasse não conseguiria descobrir o tipo de medicamento que está grafado nesta receita.

Lá vem você professor com os seus conhecimentos de História - disse o farmacêutico.

- Professor Luciano há nomes de tantas doenças, de tantos remédios, de tantos aviamentos de fórmulas de medicamentos, conseqüentemente, parece-me que alguns médicos escrevem esses garranchos gráficos, talvez porque na hora de escrever o nome correto do medicamento não se lembre direito o nome do remédio, deixando a cargo da responsabilidade do farmacêutico. Não é verdade?!

O professor Luciano permaneceu por uns poucos segundos em silêncio, olhando-me poor cima dos óculos e disse:

-Rapaz, já vem você fazendo glosa. Deixe de anarquia. Vamos continuar o nosso bate-papo sobre política que é melhor... Há mais fruto na nossa conversa...

Logo quando "seu" Bahia saiu, abri as minha pasta, peguei uma receita médica e falei para Luciano:

- Ah Luciano! Eu tenho aqui esta receita de um amigo e quero saber se você tem estes medicamentos em sua farmácia?

- É colega, eu tenho todos. Vou ficar com a receita. Passe amanhã, lá na farmácia, no meio da tarde, para pegar os medicamentos e saírmos para jogarmos algumas partidas de xadrez e tomarmos umas geladinhas no clube.

- Quê clube?

- No Flamenguinho. Em outro não pode ser... Somente no Flamenguinho é que têm tabuleiros de xadrez e bons parceiros... Faz um bom tempo que a gente não joga xadrez.

- É verdade. A semana passada em joguei com o nosso colega Carlos. Ele joga bem... Ele me deu dois xeques-mate!

- Eu também já joguei uma vez com ele no clube. Aqui entre nós, só não gosto de jogar com ele porque o rapaz durante o jogo "castiga" muito na "geladinha". Eu não tomo mais de duas cervejas com amigos, pois a terceira já não presta mais para mim, não sinto o sabor do malte e começa amargar e nada dá certo. Enche bastante a barriga e é aquele desconforto!... E qualquer outro tipo de bebida eu detesto. Em condições especiais eu posso tomar uma taça de champanhe. Caso contrário só em situações extremas... Em uma situação extrema já ocorreu comigo quando viajei para participar de um Congresso de Farmacopéia, no Rio Grande do Sul. Foi um período de muito frio. Época de uma friagem insuportável!... Meus dedos dos pés encolhiam; batia o queixo sem parar... E tremia um pouco. Meu colega, não nego não! O frio era tanto que quando tive vontade de urinar procurei o meu "pinto" e ele havia se escondido nos ovos! Então eu tive que tomar três doses de conhaque para passar o frio e meu pinto sair dos ovos. Imagine!

- Luciano! Neste caso as três doses de conhaque valeram, pois fez o seu "pinto" sair do esconderijo e deixar de chocar os ovos. Voltando à conversa da cerveja, eu tenho a lhe dizer que a cerveja só presta para mim bem gelada, num dia bastante de calor e até o terceiro copo. Depois disso, eu sinto os mesmos sintomas que você sente.

No dia seguinte fui à farmácia e lá conversamos bastante, no momento em que apareceu D. Helena, uma senhora gorda, morena, "baiana" - vendedora de acarajé, na praça de Periperi, com o seu filho, o Pedro, aluno da 6ª série. D. Helena era nossa conhecida e demonstrava estar bastante aborrecida com um dos funcionários da farmácia do professor Luciano.

Apontando para o funcionário Raimundo, disse D. Helena:

- Professor ontem eu comprei um xarope para tosse, na mão desse rapaz, dei ao meu menino e ele está todo vermelho e se coçando. Acho que ele me vendeu remédio ruim. E agora, eu quero saber o que o senhor vai fazer com o meu filho?...

- Minha senhora tenha calma pra resolvermos. A senhora no dia da compra do medicamento trouxe a receita para comprar na mão desse rapaz? (Apontando para o funcionário Raimundo).

- Sim, eu trouxe o papel que o médico me deu.

- Minha senhora em nossa farmácia não se vende remédio sem receita médica e nem tampouco fora da validade. 0 que está acontecendo é o Pedro ser alérgico ao medicamento que o médico lhe receitou. Como a senhora deu esse xarope a ele?

- Olhe professor! Este menino tossia muito. Uma tosse sem parar. Uma tosse seca. A tosse dele estava me irritando. Eu estava ficando sem paciência e nervosa. O médico mandou para eu dar a ele duas colherinhas de duas em duas horas, mas nada da tosse parar. As duas colherinhas não resolviam. Eu estava achando a quantidade muito pouca. Então, eu dei a ele para beber logo...todo o frasco, para ver se ele parava de tosssir e ficava logo bom...

- Mas D. Helena, a senhora está louca! A senhora intoxicou o seu filho. Ele está com uma bruta intoxicação. A senhora quer ir para a cadeia poor envenenar o seu próprio filho! Eu vou lhe dar um bilhete para a senhora levar o Pedro, com urgência, ao Dr. Paulo, aqui perto, nestsa mesma rua. Ele é meu irmão. Vá agora mesmo, em sua casa, pegue a receita, o frasco do remédio e leve seu filho ao médico, para ele não piorar ou ocorrer graves complicações.

O coitado do Pedro era sarará e estava tão vermelho quanto ao pescoço de um peru.

Logo quando D. Helena saiu às pressas para a casa dela, chegou o senhor Bahia com a dita receita transcrita com letras de forma conforme Luciano havia solicitado.

O farmacêutico Luciano, perguntou para o senhor Bahia:

- O quê o médico lhe disse, Bahia?!

- Ele me disse: - Quê farmacêutico são esses que não sabem ler?!!! E o pior de todos é esse farmacêutico que pediu para eu escrever com letras de forma!

Luciano meteu a mão no bolso do guarda-pó branco e retirou uma pequena agenda e depois pegando a caneta na algibeira do seu guarda-pó em atitude de anotação disse:

- É, seu Bahia, o doutor lhe disse isso!... Quer dizer que eu sou um farmacêutico que não sei ler!... Pois bem, eu vou anotar o nome dele e o endereço para fazer uma visitinha a esse doutor. Esse médico deve ser recém chegado em Periperi. Eu conheço quase todos os médicos que trabalham no subúrbio ferroviário.

Em seguida despachou o remédio para o senhor Bahia e disse:

- Bahia, este medicamento é novo no mercado. É um excelente remédio para a circulação sanguinea. É caro, mas é eficaz...

Conversamos um pouco e Lucinao encerrou o seu expediente na farmácia passando o comando para um dos seus funcionários e convidou-me para sair no seu velho carro - Fusca - bem conservado para jogarmos uma partida de exadrez e tomarmos uma "geladinha" no Flamenguinho.

Durante o itinerário para o Flamenguinho, o professor farmacêutico olha poor cima dos óculos para mim e fala:

Vamos fazer logo a visita ao doutor! Eu estou ansioso para conhecê-lo. O consultório dele é nesta rua, logo ali naquele prédio, no 1º andar, perto da igreja.

Paramos o carro em frente ao prédio, onde ficava o conslutório do referido doutor e subimos. Era um consultório modesto, tendo na sala de espera, algumas cadeiras e uma mesinha baixa com várias revistas.

Chegamos na sala de espera do consultório não havia pacientes e ninguém para nos atender. Durante uns cinco minutos que estávamos conversando na sala de pacientes abriu-se a porta do consultório, saindo uma senhora gorda com a mão dada a um menino. Fechou-se a porta e ficamos conversando por mais uns quatro minutos, momento em que o jovem médico sorridente abriu a porta fazendo uma sutil saudação maçônica e disse:

Boa tarde! Em que lhes posso ser útil? O que vocês desejam?...

Respondeu Lucinao - Boa tarde, doutor! Eu sou um dos farmacêuticos que não sabe ler e vim conhecer o médico que não sabe escrever!!!

O jovem médico sorridente, apertando as nossas mãos cumprimentou dizendo:

- Eu sou o Dr. Humberto. Estou sempre à disposição de vocês... Vamos entrar um pouco para conversarmos!...

Neste momento apareceu um rapaz alto e magro de cor branca, trajando roupa e sapatos brancos e disse em bom tom:

- Lucianinho, você por aqui!... O que está fazendo aqui!?... Você conhece o Dr. |Humberto?

- Eu acabei de conhecê-lo...

O jovem médico, bastante contente, recém chegado ao recinto fala para seu colega:

- Humberto! Ele é irmão do seu amigo o Dr. Renato.

Luciano vira-se para o médico recém chegado e disse:

- Ele é meu irmão, mas eu não sou irmão dele!!!

O Dr. Humberto com o semblante e dúvida questiona:

- Francamente, eu não entendi por que o senhor nos afirma que o ilustre Dr. Renato é seu irmão. E o senhor não é irmão dele!?...

- Eu não sou irmão dele porque nasci primeiro. Sou o mais velho. Ele é que é meu irmão!...

EVERALDO CERQUEIRA
Enviado por EVERALDO CERQUEIRA em 14/05/2006
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