Monólogo de um cão

Viajei o dia todo com meu irmão. Um sofrimento só. Demos tanto trabalho na viagem! Precisamos satisfazer nossas necessidades. Coisa horrível! O cheiro ruim que se espalhou no carro causou mal-estar aos passageiros. Também, o que tinham de fazer isso conosco?

Tomamos banho, comemos, bebemos. Como gente. Chegamos ao destino: Brumado. Ah! Me esqueci de dizer de onde vinha... Nasci em Salvador. Sou soteropolitano. Não... Nasci em Ipitanga que fica em Lauro de Freitas. E quem nasce em Lauro de Freitas, como se chama? Não sei. Também isso não é importante. O que importa mesmo para mim é a minha tranquilidade e isso me tiraram. Veja o que fizeram: estava feliz com meu irmão e meus pais. Me trouxeram para cá a fim de nos dar a outras pessoas. Até parece que somos gatos!... Meu irmão já tinha um dono. Era Ri. Não é ri. Ou era eu? Não sei. Só sei que, à noite, chegou uma mulher para o aniversário do pai do meu ex-dono, acompanhada de seu marido. Falando em cão,alardeavam, na sala, a nossa raça e a nossa beleza. A mulher foi à área de serviço para nos ver. Descartou logo meu irmão que era muito peludo. Pensou um pouco e disse que ia me adotar, se esquecendo de que uma vez dissera ao marido: lá em casa, ou eu, ou cachorro. Foi isso que ouvi o marido contar, enquanto ela dizia que eu era lindo e que já pensava em um nome bem bonito para mim. Fiquei feliz, apesar da saudade de meus pais.

No domingo, fui para a casa dela e meu irmão para a Fazenda de Ri para onde foram meus novos donos,ex-dono e muitas outras pessoas. Fiquei sozinho o dia todo. Soube que, lá na fazenda, todos se encantaram com meu irmão. E eu cá, solitário, sem ninguém para se encantar comigo!...

À noitinha, ouvi umas vozes que diziam: Cadê ele? Vamos ver! Colocaram comida no meu prato, me alisaram, fizeram carícias... Como foi bom!

Mas, em meio a esses mimos todos, comecei desconfiar, porque minha dona dizia para o marido que estava muito cansada e que cachorro dá muito trabalho!

No outro dia é que foi terrível!... Quando ela descobriu que eu tinha carrapato e que fizera cocô no quintal, dirigiu-se para mim e disse que não ia me querer... Mas sofrimento mesmo veio mais tarde, quando ela ficou acamada, chovia o dia todo e a ração tinha acabado. Sentia muita fome. Acho que era ansiedade. E ninguém saiu para comprar nada para mim e me proibiram de comer outro alimento. Engraçado! Lá também morava um lambisgóia da raça Pincher, o queridinho da casa. Comia tudo: macarrão com carne, pão com manteiga, biscoitos e bolos. Por que eu também não podia comer?

Guma era o nome do lambisgóia. Atentado, metido a valente e por cima, racista... Mas ele tinha lá seus privilégios...

Fiquei sem comer o dia todo e algumas horas do dia seguinte. Uma fome canina me atravessou o estômago, que quase desmaio. Sofri tanta discriminação!...

Mais tarde, minha dona se levantou e saiu para comprar a minha ração. Ela me passou veneno para matar os carrapatos, me deu banho com um shampoo cheiroso... Aí gostei muito. Mais ainda quando pôs a minha comida. Comi tanto!

À noite, ela me soltou no quintal. para pirraçar, fiz cocô, xixi e arranquei as plantas dos canteiros. No outro dia veio o castigo: ficar o dia todo preso no canil. Não gostei. Isso me irritou, pois esse lugar era muito pequeno e mal dava para ficar deitado. Latia... latia... latia... até abusar. Mais abusado ficava quando diziam que eu era chato, que tinha carrapato e que não me aguentavam mais...

Me soltavam, quando não suportavam o latido e o choro. E ouvia uma voz dizer que eu chorava como uma criança... Por acaso não sou um cão-criançâ?

Com raiva, fazia cocô, tirava a terra dos canteiros, derramava a água do balde, esparramava o lixo... Era um caos. Além disso, quase acabei com o colchão de Guma. É isso mesmo! Guma tem quarto, colchão e manta para se cobrir... Que vidão!

No dia seguinte, ouvi minha dona dizer ao marido que não me queria mais. Estava resolvida."Pode dar Theo para quem você quiser!" Meu nome era Theo, bonito, não? Que me adiantaram tantas coisas bonitas, como meu pelo, minha raça e meu nome, se não era feliz? Sentia-me rejeitado, humilhado! Depois que deixei meus pais, vivi num descaso! Quase entro em depressão... Mas apreceu um moço bom, que gosta de cães e aceitou ficar comigo.

Na casa de Sérgio, espalhei o pé. Não sofria mais o aperto de um canil que limitava meu espaço. Agora, a sensação de liberdade... Não ouvia vozes, dizendo coisas que me machucavam...

Estava feliz! Muito feliz. Mas, à noite, desfrutando aquela sensação gostosa de liberdade, saí caminhando pelo quintal. Quase acontecia uma trgédia... Não enxerguei uma piscina imensa. Estava muito escuro e... caí. O susto foi grande, mas chegou alguém na hora e me tirou de lá, me enxugou, me acolheu e me levou para um quartinho quente e aconchegante. Agora eu também tenho um quarto. Agora vou ter vida de cão.

Mena