* DOMINGO DE OUTONO

Era mais um final de semana, um domingo e, como de hábito, eu pretendia sair da cama só quando incomodado pelos raios solares que, como sempre, sem pedir licença invadiam a minha intimidade e enchiam de brilho a minha preguiça. Afinal, esse momento mágico só era possível nas manhãs de domingo, e logo passou a fazer parte da minha rotina dominical. Porém, as horas como sempre apressadas, e o meu relógio biológico já denunciava o vazio estomáquico. Enquanto isso, as minhas expectativas pareciam frustrarem-se ante a ausência do Astro Rei, que o meu bom humor logo o apelidou de grevista solitário.

Tudo bem, pensei. Estou no vigésimo quinto andar, é uma pena não existir nem um mar por perto para eu contemplá-lo das alturas; e logo veio-me à mente esta de Drummond: “O problema de morar em São Paulo, é que a gente anda, anda, anda, e nunca chega em Copacabana”. É, vivendo e aprendendo, como eu ouvira numa canção do Toquinho: “No mundo, no fundo, somos todos aprendizes”. E aquele instante de “lucidez filosófica” fez-me concluir; mesmo não admitindo ou não sendo artista. Dá pra perceber que tudo era festa para o meu humor. Então dei-me por conta de que àquela altura eu usufruía do raro privilégio de estar próximo de Deus, e que a soma de dois mais cinco (número daquele andar), era exatamente sete. Para a numerologia, místicos e supersticiosos, número da perfeição. Perfeito, vou escancarar as janelas e, se não me for concedida a honra de falar pessoalmente com o Arquiteto do Universo, alegrar-me-ei se ao menos puder contemplar os seus Anjos, de rostos rosados, com suas vestes luzentes, certamente a tocarem harpas ou passeando nas suas sofisticadas carruagens de fogo. Corri para a janela, escancarei a minha alma.

Pra minha decepção, uma nuvem escura tingia de angústia todo o azul do firmamento. O sol, envergonhado, também escondia o seu rosto. Dos seus olhos, sem brilho, sem cor, vertiam lágrimas silenciosas, que se juntavam aos prantos que caiam do céu e, em forma de garoa umedecia aquela manhã de outono.

Atônito, quase inerte eu procurei entender a razão daquele instante. Foi quando olhei para baixo, e lá estavam algumas crianças, seis, para ser exato. Rostinhos pálidos, descalças, esfarrapadas, revirando o lixo do condomínio, em busca de algo para comer. Só então eu comecei a compreender a tristeza do sol, as lágrimas do céu, a revolta da natureza, a angústia outonal. Eu ainda refletia sobre valores e conceitos, enquanto lá se iam os pequeninos, com alguns restos de comida debaixo dos braços; para, com certeza, alimentar os irmãozinhos naquela orvalhada manhã de domingo.

Eu os observei até que sumiram do limite dos meus olhos; só então pude perceber que, igualmente aos anjos do céu, aqueles meninos carregavam nos semblantes uma incontestável paz, e nos seus corações, sabedoria, que só o olhar humano era incapaz de compreender.

Imitando o gesto do sol, envergonhado, eu fechei a janela e escondi o meu rosto.

* publicado na revista "Expressão" Rib. Preto/SP

João Nery Pestana
Enviado por João Nery Pestana em 24/05/2006
Reeditado em 24/05/2006
Código do texto: T162149