O MENINO E O MAL-ESTAR DA CILVILIZAÇÃO

Pouco depois de chegar a casa, sentou-se na varanda com o jornal na mão. De onde estava, podia ver os filhos chegando da escola situada na quadra vizinha.

No ano escolar anterior, seu segundo filho ficava amuado e fazia bico a cada saída do irmão mais velho para a escola. Agora almoçava a correr, pedia licença para sair da mesa sem esperar que alguém respondesse. Reaparecia entusiasmado no uniforme de marinheirinho da série de alfabetização no colégio. Apressava o irmão que o enxotava porque ainda era muito cedo. Revisava cadernos e livros enquanto a mãe lhe calçava as meias e os tênis. Era o terceiro dia de aulas e ele estava pronto para a grande aventura, mochila às costas e lancheira na mão.

Um artigo do jornal distraiu-a até a chegada das crianças: “Faz-se necessária uma reflexão sobre a violência daquilo a que chamamos educação e sobre a absurda condição do homem moderno; sobre o condicionamento dos jovens ao contexto social; sobre o domínio a que se é submetido desde os primeiros anos de educação ... uma educação para a obediência, para a perda de personalidade e de individualidade, para a resignação diante da metamorfose que a sociedade vai operando no cidadão até o reduzir à insignificância do inseto kafkiano... o jovem, em seus anos de rebeldia, entra em choque com o estabelecido, num estertor do que sobrou do homem original. O homem moderno, em geral, há muito perdeu grande parte do seu espírito. É provavelmente esta a razão de, aos quarenta anos, constatarmos que aos vinte, embora menos experientes, éramos mais inteiros, mais íntegros e em sintonia com nossa condição humana”.

Baixou o jornal. Agora eram eles mesmos. O filho mais velho vinha acompanhado de três colegas, conversavam e riam. Gritaram ao pequeno que vinha mais atrás que atravessasse a rua antes que viesse um carro.

O pequeno aproximou-se do portão da casa. A mãe estranhou o seu uniforme limpo. A mochila, pendurada em um ombro só, desequilibrava-lhe o corpo e parecia grande demais para o menino. A lancheira vinha arrastada pelo chão. Uma tarde sem piratas nem aventuras no mar do pequeno marinheiro.

- E então, filho, como foi a escola hoje? Conta ...

- Não vou mais.

- Que é isso, fillho, hoje foi só seu terceiro dia de escola.

- Agora já chega, mãe.

- Como assim? Você queria tanto ir para a escola...

- Não quero mais. Já chega!

- Vamos lanchar, vamos. Conte como foi isso.

Rápido aquele menino, perspicaz, pensou ela, a tempo de disfarçar um sorriso orgulhoso.

Um sorriso também amargo porque, no dia seguinte, o filho descobriria que ela, sua própria mãe, também era cúmplice na grande violência armada contra ele.

Ponta Porã, 1980

Anabela Bingre de Négrier
Enviado por Anabela Bingre de Négrier em 28/05/2006
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