Laborum

Todo dia era sempre o mesmo. Já estavam naquele trabalho há muitos anos. Zé era o motorista de um rabecão do I.M.L, o seu colega e amigo chamava-se Antunes. Passavam o tempo todo a levar os mortos de um lado para o outro.

Ao longo dos anos preencheram o silêncio dos passageiros com conversas. Eram bons amigos e já quase não tinham assunto. Parecia um desses muitos matrimônios monossilábicos.

Certa manhã, Zé pergunta ao Antunes quantas pessoas iam no carro.

- dois, eu e tu Zé lé lé. Bicho besta.

- e o defunto aí atrás? Não conta?

- lógico que não, tá morto.

- e daí que tá morto? Quer me dizer que agora deixou de ser uma pessoa?

- lá vem tu de novo com essas conversa, anda com medo das alma penada?

- para de falar besteira, te fiz uma pergunta séria e você já começa com baixaria.

- Zé, tu é memo louco. A gente já trabalha há tanto tempo junto, e vira e mexe tu vem com essa conversa dos morto. É o seguinte, pensa comigo. Esse cara que vai aí atrás, que nem eu nem tu sabemo o nome, essa cara tá morto. Quantos carro igual ao nosso fazendo o memo trabalho tu conhecesse?

- um monte.

- tá vendo! Todo mundo morre o tempo todo. Eu vou morrer, tu também. A gente tá fazendo a nossa parte. Bonito era se ninguém fizesse o nosso trabalho.

- eu sei disso, mas eu te perguntei aquilo porque eu vinha pensando que o cara aí atrás devia ter família, sei lá. Uma namorada, alguém que quando receber essa notícia vai desabar. E fiquei pensando que podia ser algum conhecido meu, e que então era eu que ia ficar triste...

- porra, cala a boca Zé! Tu é memo bizarro! Já não basta trabalhar o dia todo com os morto, tu ainda tem eles na cabeça. Deixa disso caralho! Ta cheio de coisa melhor pra pensar e tu fica nessa. Olha ali! Ali! Que gostosa, aquilo é que é uma bunda!

- e se fosse teu parente?

- não é.

- e se fosse?

- tu é memo chato! Tá bom, e daí se fosse meu parente? Tava morto, eu não ia podê fazer nada.

- você nem chorava?

- se fosse um parente próximo talvez, não sou de chorar, e não sou tu que fica pensando nessas coisa. Porque é que a gente não corta esse papo e para ali no Tião pra comer alguma coisa, tô c´uma fome!

- e o morto?

- tá morto!

- a gente vai almoçar e deixa ele aqui?

- até parece que é a primeira vez!

- mas ainda é cedo, dá tempo de levar ele pro instituto e depois ir almoçar.

- já te disse pra parar com isso, sempre a mema coisa. E para logo que eu tô morrendo de fome.

- não, vamos deixar ele lá e depois voltamos.

- eu tô com fome, e ele não tem nenhum compromisso marcado.

- deixa de ser besta, você não tem mesmo respeito pelos mortos.

- eu já tô levando ele e tu me diz que eu não tenho respeito? Porque é que eu sempre tenho que te pedir as coisas um monte de vezes? Para aí, para! Tá vendo, já passou, tu é foda!

- a gente vem depois.

- eu vou pedir transferência, tu tá ficando muito chato.

- o que é que custa deixar ele lá? você é mesmo insensível, é por isso que não chora nem se o pai morrer.

- eu não disse que não chorava. Tu é memo um animal! E sabe o que mais? Chega! Não falo mais contigo, podia estar comendo alguma coisa e por tua causa estou aqui com fome. Cala a boca e dirige.

- eu tenho certeza que chorava.

- cala a boca!

- chorei quando morreu o Ayrton Senna.

- será que é muito pedir pra você se calar? CALA A BOCA!

Seguiram calados, o Zé concentrado no trânsito e o Antunes, junto a porta. Ia com a cabeça virada para fora.

- e se fosse a tua mãe, você chorava?

...

- meu Deus!...

...

Nuno Négrier
Enviado por Nuno Négrier em 31/05/2006
Reeditado em 31/05/2006
Código do texto: T166909